Bergson e o Humano
Na conferência A alma e o corpo*, do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), estão expostos os atributos que estas duas partes, material e imaterial, respectivamente, desenvolvem para que entendamos a dinâmica humana. Em outras palavras, o autor tentará mostrar a distinção na qual consiste o corpo e a alma (ou o Eu e o espírito — Bergson, no texto em questão, afirma a “alma”, “Eu” e “espírito” como sinônimos). Para isso, é preciso que diferenciemos dois aspectos importantes, a saber: o tempo e o espaço.
O corpo, enquanto matéria, é dado no espaço e no tempo, pois aquele tem um contorno definido que está posto sobre algum lugar espacial. A alma, enquanto coisa imaterial, é construída não espacialmente, mas sim no tempo, ou seja, o espírito — ou o Eu — está arraigado no corpo que, com a ação do tempo influenciando este, a consciência percebe um passado, um presente e se organiza para criar um futuro. Sendo assim, o espírito formula as ações que são efetuadas pelo corpo.
Embora a consciência tenha relação com o cérebro, segundo o filósofo francês, não significa que o último dite as ações da primeira. Isso pelo fato de não sermos capazes, nem com o auxílio da ciência, de determinar as atitudes mentais de um indivíduo, mesmo se fosse possível examinarmos o cérebro minuciosamente. O cérebro não determina a alma à sua liberdade, isto é, o espírito não é predeterminado por funções cerebrais, como se fosse um efeito de causas físicas. O Eu é autossuficiente para com suas ações. Somos bombardeados constantemente por situações e fatos, e isso é o que dirige a consciência aos seus atos.
Sendo a alma não uma função do cérebro, ou seja, não sendo ela o efeito de causas físico-químicas do nosso órgão, é tarefa da filosofia demonstrar o que seja ela, tendo em vista que a ciência não é capaz de decifrar as ações do espírito por inspeção empírica.
Para que a filosofia seja capaz de investigar o que seja a alma, é de bom grado sabermos que a vontade livre, assim como denomina Bergson, é o produto do espírito, não sendo causado por estímulos puramente cerebrais. Se assim fosse, defende o autor, ou seja, se tal vontade fosse um efeito do cérebro única e exclusivamente, “[...] a alma humana tornava-se incapaz de criar; se ela existisse, era preciso que seus estados sucessivos se limitassem a traduzir em linguagem de pensamento e sentimento as mesmas coisas que seu corpo exprimia em extensão e movimento.” (BERGSON, 2009, p. 39).
Em outros termos, o que o autor pretende nos passar é que se a alma humana fosse determinada cerebralmente nós não poderíamos ter vontades livres, uma vez que estaríamos à mercê da determinação imposta e logicamente encadeada.
Então, o que é o cérebro, grosso modo, para Bergson? É uma espécie de correspondência entre o sentimento e a vida real, assim como podemos ver no texto: “Portanto, falando precisamente, ele não é órgão de pensamento, nem de sentimento, nem de consciência; mas faz com que consciência, sentimento e pensamento permaneçam tensionados para a vida real e, consequentemente, capazes de ação eficaz.” (p. 47). Sendo assim, tal órgão, segundo a visão do filósofo, é uma ponte na qual atravessam os sentimentos e pensamentos não determinados fisiologicamente entre o puramente subjetivo e o realmente objetivo, ou seja, transformam tais subjetividades em ações.
Em suma, o que o filósofo francês quer nos mostrar é que o corporal não determina o subjetivo, isto é, nossa consciência não é estruturada a partir de estímulos cerebrais. O Eu é uma estrutura mais primária — esta no sentido de ser independente de determinações fisiológicas —, que é exposta via cérebro para a realidade efetiva.
Para Bergson, embora pareça haver uma independência entre corpo e alma, não significa que os dois sejam entidades distintas e perduráveis um sem o outro. A consciência só se efetiva através do cérebro. Sem este, não há possibilidade de uma efetivação daquela, uma vez que não haveria como obter correspondência entre pensamento e realidade e, portanto, a inexistência de pensamento traduzível para a vida concreta. Sendo assim, a consciência se extingue com a incapacidade do corpo.
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* BERGSON, Henri. A alma e o corpo. In: . A energia espiritual. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2009, pp. 29-59. (Coleção Biblioteca do Pensamento Moderno).
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