O Imperador Filósofo romano Marco Aurélio (121-180 da era cristã) escrevia para si mesmo, como se fosse um exame de autoconsciência, ou seja, conversava consigo próprio sobre problemas humanos como a morte, as fraquezas do corpo, etc.; sobre o divino e sua relação com a natureza, bem como a pequeneza do homem diante da grandeza do divino.
Marco Aurélio não foge às ideias estoicas e as expõe em seus escritos como uma forma de vida serena, como é o objetivo desta corrente. O filósofo em questão trata dos mesmos fatores “clássicos” que caracterizam o estoicismo, ou seja, que as coisas que acontecem no mundo nada mais são do que a necessidade do universo em manter o equilíbrio, como pode ser observado no trecho: “[...] o que acontece é por força da necessidade e contribui para o bem geral do universo de que fazes parte. De resto o bem de uma parte da natureza não é outro que o bem da natureza universal e o que visa a conservá-la.” (AURÉLIO, Pensamentos, II, 3)*.
Isso transparece a noção de que é preciso, para nos mantermos serenos, que aceitemos aquilo que não podemos mudar ou evitar. Assim, é possível vivermos em conformidade com a natureza e desta não cobrarmos e nem esperarmos o que não é de sua parte. Em outras palavras, Marco Aurélio afirma que aquilo que acontece — cuja fuga e mudança não nos cabe — é a necessidade que a natureza tem em deixar todas as coisas em equilíbrio.
Por outro lado, o estoico romano expõe, também, uma das teses principais dessa corrente, a saber: a preparação ou a aceitação da morte. Pois a vida humana é apenas uma ínfima passagem do homem pelo mundo, não cabendo a ele mudar esse rumo que o é natural.
A filosofia, portanto, tem o propósito de ajudar o homem a agir e a viver de forma salutar, isso no que diz respeito as suas ações e a seu estado de espírito. A filosofia tem esse papel na vida do homem por este, naturalmente, viver de forma perturbada, isto é, a vida nem sempre é calma e geralmente o põe em situações embaraçosas, quer seja espírita ou materialmente:
Na vida do homem a duração é um ponto, a substância fluente, a sensação embotada, o composto de todo o corpo fàcilmente corruptível, a alma em perpétuo torvelinho, o destino enigmático e a fama algo de indiscernível. [...] a vida, uma guerra, um exílio em terra estranha; [...] Quem nos poderá guiar no meio disto tudo? Uma só coisa, penso eu: a filosofia. E esta consiste em velar atentamente pelo deus interior isentado-o de afronta e dano, propiciando-lhe o triunfo sobre prazeres e penas, que nada acometa à ligeira, fuja da mentira e da dissimulação [...]. (AURÉLIO, Pensamentos, II, 17).
Como é de se ver nessa citação, Marco Aurélio põe a filosofia como exercício de autoconsciência, como ela, a filosofia, tenha o caráter de tirar o homem dos infortúnios que a vida o proporciona e levá-lo a uma paz interior, uma ataraxia. Essa, por sua vez, é, talvez, o maior objetivo que o estoicismo quer passar, ou seja, a tranquilidade ou a imperturbabilidade da alma.
O homem deve guiar sua vida serenamente, não atribuindo pesos enormes aos acontecimentos factuais que a vida o faz passar, pois, como já foi dito, é preciso aceitar aquilo que não se pode mudar. Para isso, o filósofo romano afirma que se deve cuidar adequadamente da mente, enquanto essa é parte essencialmente pertencente ao homem. Pois esse é composto do corpo, do ar e da mente. Portanto, a mente é a parte que deve ser mais bem preservada e cuidada, uma vez que é ela que deve guiar o corpo e cuidar bem desse:
És composto de três elementos: o corpo, o ar que respiras, a inteligência. Os dois primeiros pertencem-te enquanto te cumpre cuidar deles; o terceiro é o único que é pròpriamente teu. Se expulsas de ti mesmo, quero dizer, do teu pensamento, tudo o que os outros fazem ou dizem, tudo o que por tua vez fizeste ou disseste, tudo o que, com apreensões de futuro, te atormenta ou que, por pertencer ao corpo, te envasa ou ao fôlego que faz uma coisa contigo, escapa ao teu livre arbítrio e que foi anexado, e tudo o que arrasta em sua órbita o turbilhão exterior [...]. (AURÉLIO, Pensamentos, XII, 3).
Em que, então, consiste a ataraxia? Consiste no fato de estar alheio a tudo aquilo que não faz parte necessariamente à natureza humana. É expulsando de si mesmo as paixões que adoecem e viciam o espírito que o homem caminha ao encontro do equilíbrio mental: “se queres que, liberta das condições inerentes à tua sorte, a tua faculdade inteligente, sem perder a pureza e livre de ataduras, viva dobrada sobre si, praticando a justiça, aceitando os acontecimentos e professando a verdade” (Id, Ibid.). Em suma, como é objetivo principal do estoicismo, a tranquilidade da alma deve ser um exercício interior, ou seja, o homem deve permanecer alheio a tudo o que lhe é contingente, pois são as facticidades acidentais da vida que perturbam, desnecessariamente, a serenidade humana.
Junto a isso, aprender a aceitar o que for necessariamente incontrolável por si, como acontece com os fenômenos da natureza e com tudo o que não é possível controlar. Manter-se alheio às contingências é, portanto, não atribuir peso de valor àquelas ações de outrem que não acrescentam nenhum conhecimento para si próprio nem para os que proferem. Resumindo, a ataraxia é a “arte” de permanente reflexão e bem-estar interior. O pensamento bem cultuado é senhor do próprio homem.
Como consequência disso, o conhecimento se dá através da reflexão interior, como é visto na obra de Marco Aurélio: “Características da alma racional: ver-se a si mesma, analisar-se, moldar-se conforme a ideia que de si concebe. O fruto que produz ela mesma o recolhe, enquanto o fruto das plantas e os alimentos animais outros recolhem.” (Pensamentos, XI, 1). Esse conhecimento, e as ações que dele decorrem, desemboca na atividade política — nada mais adequado ao perfil do filósofo, ou seja, imperador.
Uma vez que se analisa a si mesmo, o homem torna-se amigo da justiça por meio de um exercício filosófico. Sendo assim, não é possível, ao mesmo tempo, possuir uma alma imperturbável (ou tranquila) e ser tirano, pois este último encerra em si toda a crueldade e injustiça, contradizendo com tudo o que a reflexão interior e a filosofia ensinam:
Não te volvas um César a fundo, não te deixes impregnar desse espírito – que é o que vulgarmente acontece. Conserva-te um homem simples, honesto, puro, grave, natural, amigo da justiça, piedoso, benevolente, afectuoso, firme no cumprimento dos teus deveres. Luta por preservar naquilo em que a filosofia te quis ver transformado. (AURÉLIO, Pensamentos, VI, 30).
Então, a tirania deve ser evitada conforme o que se aprende com o exercício filosófico, o qual faz com que o homem seja guiado pela mente, pelo conhecimento, e, não, pelos instintos ou pelas sensações:
Corpo, alma, inteligência. Pertencem ao corpo as sensações; à alma os instintos; à inteligência os princípios. Receber impressões do que se pode ver, disso até as bestiagas são capazes. Ser zarandeado como marionetas pelos instintos, são disso muito capazes as bestas-feras, os andróginos, os Fálaris e os Neros. Tomar por guia a inteligência rumo ao que se apresenta como dever nosso também disso são capazes os que não respeitam os deuses, traem a pátria, cometem todas as torpezas à porta fechada. Se tudo o mais é comum aos seres de que falámos, privilégio do homem de bem é fazer acolhimento com alegria e amor ao que lhe sucede e vem entretecido na trama da sua vida [...]. (Id, Pensamentos, III, 16).
Como é de se ver, agir conforme o conhecimento adquirido pelo exercício filosófico, um conhecimento pautado na autorreflexão e também concernente aos problemas da vida humana, é uma ação essencialmente humana, isto é, mesmo aqueles que vivem sob os instintos da alma (como afirma Aurélio) e regado apenas com sensações, as quais são contingentes e desnecessárias a uma boa conduta, também são capazes de agir benéfica e justamente perante os seus semelhantes. Para isso, basta que tome a filosofia como seu pano de fundo principal e passe a agir conforme os ensinamentos que essa promove.
No geral, conforme Aurélio, a ação humana condizente com a atividade introspectiva é a ação que leva o homem à execução da justiça. Pois é refletindo sobre as fraquezas humanas e sobre as mazelas que assolam a humanidade que se adquire o conhecimento do que seja próprio do homem e como esse deve agir para que mantenha a vida serenamente vivida.
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* As citações são provenientes de uma tradução portuguesa da obra aureliana.
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