Do cavalo de Turim

PEGASUS | Giorgio de Chirico
O colapso mental do filósofo alemão Friedrich Nietzsche teve seu estopim aceso no dia em que presenciou o espancamento de um cavalo por seu dono, na cidade italiana de Turim, em janeiro de 1889. Na ocasião, Nietzsche se jogou ao pescoço do animal e impediu a continuação daquela atrocidade. Sua demência acabara de ter o início deflagrado, só acabando com sua morte, em agosto de 1900.

Um filósofo que prega a destruição do “último-homem” para a aurora de um “além-do-homem” destrói-se ao ver a decadência iminente de um animal.

Talvez os homens e, por consequência, a sociedade tenham perdido seu sentido e sua importância. Os indivíduos não mostram perante os outros, em sua autenticidade, aquilo que realmente são. Sempre escondem um de seus lados, suas manias, seus anseios, suas vontades – que muitas vezes são sórdidas. Uma ou várias partes da face é ou são suprimidas por covardia ou qualquer outra sentimentalidade de opressão.

Diante dos animais, parece que o Eu exterioriza-se em sua forma mais original: sem medos, sem (re)pressões. A companhia de um torna-se um campo de entendimento mútuo, no qual duas naturezas, originariamente semelhantes, se encontram e se deixam permear uma na outra.

Mas, a questão é a seguinte: como entender o choque vivido por Nietzsche? Talvez seja mais fácil compreender que a relação homem-animal se estabelece, antes de tudo, num contexto de doação, de interação desinteressada. Esse contexto, só um “espírito de criança”, que este filósofo defendia nas três metamorfoses do espírito, em Assim Falava Zaratustra, pode significar como um fim nele mesmo, ou seja, a relação com um animal apraz o homem pelo simples fato de amar, de se reconhecer um no outro, e de não usá-lo como um meio para algo extrínseco a esta empatia. Enfim, só um “espírito lúdico”, no sentido nietzschiano, valora uma situação apenas com o intuito de vivê-la, sem interesses externos, mas apenas em seu interior.

Isso, por fim, nos leva a pensar: um animal é muito mais que um mero ser biológico. Ele faz parte de uma intersubjetividade, é um-outro que está aí para mim, que me sente, me percebe e que “reivindica” uma contrapartida minha. Porém, ele é “um-outro” não nos moldes do homem, é claro; é um-outro tal que sua essência transborda na doação espontânea, que não se obscurece e, portanto, não engana. É um ser autêntico e não-covarde. É um ser louco: destituído de medos e sordidez convencionais.

Talvez por essa transparência animal e pelo obscurantismo humano, nos simpatizemos, cada vez mais, com os animais que com os homens. Certamente o choque do filósofo bigodudo tenha a raiz na dor da possível quebra daquela ligação pura, imediata, que logo se sedimentou no simples toque do olhar.

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