Deficiência como forma de acesso ao mundo

CAFÉ DA MANHÃ DE UM HOMEM CEGO | Pablo Picasso
Algo só é “deficiente” do ponto de vista daquele que se denomina “eficiente”, isto é, uma coisa só existe enquanto contrária quando há uma referência que se oponha a ela. A noite só é denominada “noite” porque existe o dia que a ela se opõe. Assim também o é a “deficiência”.

O “deficiente” – entre aspas porque usarei apenas como denominação – é um modo particular de acessar o mundo, da mesma forma que eu, disposto de todos os sentidos em harmonia e de um corpo mecanicamente perfeito, acesso o mundo que me circunda.

No caso da cegueira, por exemplo, o cego não está privado de mundo, assim como também não está o paralítico. O cego “enxerga” o mundo de outras formas peculiares à sua conjuntura corporal, aquilo que o filósofo Merleau-Ponty chama de “enformação corpórea”, na Fenomenologia da Percepção. O paralítico, do mesmo modo, vive o seu mundo da forma que sua limitação permite. Contudo, não deixa de o sentir.

Como Denis Diderot, em sua instigante obra Carta Sobre os Cegos, afirmou, numa fala atribuída ao personagem cego, “valeria muito mais, portanto, que se aperfeiçoasse em mim o órgão que tenho do que me conceder aquele que me falta.” Isso nos mostra que o “deficiente” aprende – no caso de uma deficiência adquirida – a sentir as coisas; mas, por outro lado, ele experiencia o mundo naturalmente quando já nasce com um “limite”, tal que sua “limitação” não o faz se sentir impotente, justamente por não experimentar outras formas de acesso ao mundo para servir-lhe de referência.

O corpo, em sua onipresença a si, como uma forma vivida juntamente com seu mundo, não pode ser comparado a uma peça, que o mínimo defeito já não permitiria sua utilização. Nossa experiência corporal não é uma experiência puramente fisiológica, mas uma experiência existencial, ou seja, experienciamos o mundo tal qual nossa capacidade permite. Em outros termos, nossa vivência sensorial de mundo está intrinsecamente ligada a como nos relacionamos com aquilo que nos envolta. Isso permite concebermos que o “deficiente” não se distingue de mim, porquanto ele percebe o mundo em sua peculiaridade, assim como eu o faço em minha atual situação.

Para resumir o que temos dito, nosso corpo não é para nós um objeto. Nós não o sentimos como se ele nos fosse externo, mas o sentimos no ato de nos relacionar com o mundo. Todos os nossos órgãos e membros se voltam às coisas de forma harmoniosa e conjunta, o que faz com que não percebamos cada membro ou órgão em separado. Isso nos leva a conceber que o “deficiente” percebe ou vive o mundo diferentemente de mim, mas isso não faz dele um ser de mim, existencialmente, distante.

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