Entre ser e se ver

MULHER DE FRENTE AO ESPELHO |
Ernst Kirchner
Um arqueiro, numa matéria que passou na TV, sobre tiro com arco, afirma que depois de uma façanha sua, ao atingir o objetivo máximo do alvo, precisou ver o vídeo para saber como havia conseguido tal feitio.

Isso nos mostra que, no ato de sua execução, o esportista se tornava o mesmo tecido que o mundo, numa carnalidade intrínseca, ambos fazendo parte de uma mesma atualidade. Este estado carnal não nos possibilita enxergar a situação de “fora”. O mundo e nós mantemos uma relação onipresente.

Um olhar de sobrevoo é uma condição pela qual podemos idealizar nossa vida, de maneira ordenada e significativa. Isto é, lançamos uma visão sobre a totalidade que conseguimos abarcar para formular uma meta ou uma valoração qualquer.

Este sobrevoo nos dá uma sensação de onipotência, sensação tal que nosso anseio pela ordem se torna cada vez mais requerido e mais revisitado. No entanto, esta pretensa separação entre o vivente e o seu mundo, na “ação de sobrevoar”, esbarra-se no seu limite quando o existir exige um ato continuado e ininterrupto.

O que seria este ato contínuo? Nossa vivência é um fluxo único de ação e de experiências, sem possibilidade de abstrairmos de sua constância. Em outras palavras, no decorrer de uma ação, nós não a contemplamos de fora, e, sim, a executamos num “pertencimento umbilical” com o que nos rodeia.

Aquela visão que tudo abarca de fora, que está presente em nossas projeções e memória, é a característica mais fundamental de nossa humanidade: permite-nos atribuir sentidos, idealizar modelos de vida e de ação, etc. Contudo, nossa existência, na sua continuidade, não é um viver feito por um artífice estranho a ela própria. Nosso viver é a experiência arraigada no mundo e que se concretiza na conjunção íntima do nosso Eu carnal com o afeto que o mundo nos causa.

Esta situação nos faz perceber que aquele sobrevoo, aquela pretensa onipotência, é apenas um recurso ordenador, que está mais a serviço de uma organização subjetiva que a uma experiência vivida.  Assim, olhar de fora, embora tenha uma raiz nela, não é uma efetivação da experiência, mas ordenamento.

Para o tímido, ao falar em público, normalmente sua atenção volta-se para a preocupação com sua desenvoltura diante do suposto julgamento da plateia. Isso faz com que sua experiência mesma enquanto falante perca sua força, devido ao obscurecimento de uma relação (falar a um público) em detrimento de outra (tentar enxergar-se de fora). É certo que isso pode se explicar pela via da atenção/foco. Mas a atenção só é enquanto predisposta a um horizonte de dados, ou seja, ela realiza o ato pelo qual estabelecemos a articulação de nossa vivência. Neste caso, a apresentação do tímido conflita duas experiências: uma tentativa de sobrevoar a situação e a tentativa de falar bem. Portanto, ambas conflitantes, fazem com que o tecido falante-público torne-se cada vez mais frágil. E, quando este tecido se rasga, a relação se esvai.

Em suma, com estas considerações, quero deixar a reflexão de que, como Merleau-Ponty afirmou, na Fenomenologia da Percepção, o engajamento nas situações efetivamente vividas é o ato pelo qual o sujeito se forma. Complemento que aquela experiência do arqueiro não apenas se remete à sua formação enquanto sujeito, mas sua experiência mesma de atirador é uma ação que não distingue quem atira do alvo. Ambos tornam-se uma conjugação única no momento da ação. Isso faz com que ele “não saiba” como conseguiu o feito, recorrendo a artifícios externos para se ver.

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