O fundo como nossa superfície

GERAÇÕES | Edvard Munch
Quando nos movemos em direção às ações do dia a dia, aos sentimentos e tudo o que faz parte de nossa vivência, o fazemos carregando toda uma profundidade onipresente própria.

O passado, juntamente com suas marcas, penetra no presente como um “ser maciço”, para falar como Merleau-Ponty, em suas Notas de trabalho

A percepção de uma temporalidade que também já foi passado mantém manifestos os ecos que as variadas experiências proporcionaram.

Como o tempo – ou a temporalidade – não se subdivide em três, como costumamos ilustrá-lo, o que acontece é que somos uma continuidade constante. Essa continuidade faz com que carreguemos o peso de toda a vida vivida.

Se pudéssemos, efetivamente, dividir o tempo em momentos, deixaríamos o que nos fosse prejudicial para trás. Até aquilo que nos tivesse causado boas marcas também seria deixado de lado, tendo em vista que a ruptura não distingue instantes específicos.

No entanto, querer separar o presente do passado e do futuro é apenas um recurso subjetivo de discernimento, mas não de realidade existencial.

Como aquela marca em nosso braço, deixado quando criança pela vacina BCG, não é uma marca do passado, mas uma marca perene, assim também o é nossa existência. Esta constrói, a cada dia, o que seremos até perecer. E esta construção se dá pela sequência de tempos que em um momento futuro se tornará passado, mas sem perder seu valor para o resultado adquirido.

A percepção de um passado, nesse caso, não é buscar num outro tempo o que deixamos por lá; é a afetividade de uma “estrutura” que está conosco o tempo inteiro e que nos envolve, assim como as Mãos desenhando-se, de Escher. Ao mesmo tempo em que envolvo sou envolvido: um passado contaminando um presente e um presente reconfigurando um passado em sua atualidade.

Dito tudo isso, perceber um passado a partir do nosso presente não significa sobrevoá-lo; significa trazê-lo conosco seja para superá-lo, seja para referenciá-lo ou para qualquer outra razão. O passado reflete em nós, de alguma forma, seus raios de referência.

Portanto, o que há de mais profundo em nós se revela na nossa face que dá para o mundo, uma vez que a superfície é apenas o “encobertamento” de um mundo complexo. E, para todo visível, há o invisível que lhe compõe.

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