A maior parte dos homens permanece tão bem conduzida pelo instinto que de modo algum observa o que acontece. Eu quero falar e fazer o destaque do que acontece. (Nietzsche, O livro do filósofo, af. 119).
O VÉU DE VERÔNICA | Oskar Kokoschka |
A percepção não se restringe a ver aquilo dado, da forma com que nos aparece; nem, tampouco, limita-se aos olhos e aos detalhes de cores dos quais somente nós humanos somos detentores. A percepção deve ser a mistura da coisa apresentada e do invisível que lhe ampara. Não defendo, aqui, ao afirmar o “invisível”, uma essência por trás do aparecido, mas apenas compreender como ele “se doa” para nós.
Nenhum dado está desamparado no momento em que aparece. Seu enredo é aquilo que o sustenta e que, quase sempre, não acompanha a objetividade do aparecido. É preciso, para compreendê-lo, executar um movimento de transcendência, ou seja, de ultrapassar a própria coisa e enxergar o pano de fundo que não vem “visivelmente” junto com ela.
Uma passagem me chamou muito a atenção ao ler Carta sobre os cegos, de Diderot, a saber: “os olhos cessam antes de ver do que as mãos de tocar.” Esta fala é do personagem cego ao se vangloriar das sensações de alguém privado da visão.
Essa passagem nos mostra que vivemos como que numa zona de conforto ao ver as coisas. Mas não as enxergamos. Em outras palavras, o percebido parece trazer toda a carga significativa na camada que está em face para nós. Cessamos de conhecê-lo a partir do momento em que ele aparece no horizonte de nossa percepção, por acharmos que sua forma de ser está toda no seu aparecimento.
O movimento tátil do cego, ilustrando com a fala do personagem, é a metáfora de que precisamos ir além da “rusticidade” dos dados sensíveis. É preciso que toquemos, de fato, o que percebemos para que encontremos as formas constituintes de sua realidade.
Perceber, portanto, é um aproximar-se do percebido. Não é uma apropriação daquele que percebe a uma coisa vista, porque para se apropriar é necessário que a coisa seja acabada para poder ser “dominada”. Aproximar-se significa estar com a coisa; acompanhá-la e ser dela um cônjuge existencial, ou seja, entender suas modalidades e seus motivos.
Ser cego funcional, diante disso, é tentar apropriar-se a distância, persuadido pela falsa riqueza de caracteres objetivos como verdade escancarada, excluindo a palpação como método de presença e de intimidade com a coisa.
Essa cegueira, em grande parte, é fomentada pela superabundância de dados que nos afetam diariamente, fazendo com que nos distendamos em vários focos e percamos a profundidade de cada um.
Portanto, perceber é mais que ver. É enxergar. E enxergar requer a minúcia de se envolver envolvendo, isto é, de penetrar na existência própria dos fatos e trazer à tona sua engenhosidade íntima.
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