Existência, essência e feminismo

ALGUNS PEQUENOS BELISCÕES APAIXONADOS |
Frida Kahlo
Há uma via – que, inclusive, já foi exposta por Simone de Beauvoir – pela qual podemos traçar um itinerário feminista a partir da filosofia de Sartre; em especial, de uma afirmação encontrada em sua conferência O existencialismo é um humanismo.

A máxima sartreana diz que “a existência precede a essência”. O que isso significa? A história da filosofia é marcada pela busca das essências das coisas, inclusive da do ser humano. Para esse propósito, sempre se pensou que o que as coisas são, em sua essência, determinava o que elas seriam em sua existência. Sartre, mais incisivamente, inverteu este processo.

Tornamo-nos aquilo que queremos ser. Primeiro existimos e vivenciamos nossas relações com o que nos envolta; depois construímos a essência de cada um de nós, mesmo que uma essência “complacente”. 

O humano, por exemplo, segundo essa concepção, não nasce determinado por uma essência que o delimita existencialmente. Ele é uma construção e uma liberdade contínuas. Ele se constrói a partir das vivências que ele mesmo intenciona viver ou que o mundo lhe impõe.

Diante disso, homem e mulher não se diferenciam essencialmente, visto que não possuem uma essência prescritiva. Ambos são seres indeterminados que vivem na construção permanente de si, indiferenciando sua biologia. A genitália não determina os modos de vida de cada um, uma vez que a liberdade e a intencionalidade não perpassam pelo crivo do sexo biológico.

Até o corpo vivido – a experiência de vivenciar a corporeidade feminina e masculina – se torna um mecanismo pelo qual a sociedade enquadra o que deve ser expressão corporal de homem e de mulher. Feminilidade e masculinidade, expressadas pelo corpo, são construções culturais. Mas, o corpo não é objeto deste texto.

As diferenças que se sedimentaram entre os dois sexos têm caráter unicamente social. Apenas se aceitássemos uma diferenciação essencial entre os dois é que poderíamos defender uma cisão genuína entre um e outro. Porém, o apartheid referente a homem e mulher é justamente uma fissura construída no decorrer da existência humana.

Esta construção elaborou-se com a máscara de essencialismo, ou seja, tentando constranger o feminino como essencialmente distinto do masculino - tomando este último como referência. Mas, como constatar um “princípio” diferenciador entre os dois? A mesma indeterminação que o homem carrega na sua existência a mulher também a possui. 

Todos os constrangimentos sofridos por aquele sexo que foi socialmente deflagrado como segundo não poderiam protagonizar uma reviravolta – tal qual vemos hoje – se sua essência fosse o que a opressão sempre disse ser. 

Essa mudança de conduta atuada pelas mulheres prova que elas continuam a ser a mesma liberdade que o homem sempre foi. A fuga da opressão nos mostra que, ao sair de uma determinação como “segundo sexo” para uma posição igualitária a seu sexo oposto, o humano escreve sua própria forma de vida, sem estar preso a uma predeterminação universal de diferenciação.

Se eu era oprimido e hoje me vejo liberto, mudando o “conceito” pelo qual queriam me definir, é sinal de que sou maleável e que posso decidir como quero viver. Isso extingue a noção de uma essência reguladora e imutável da conduta humana e, principalmente, de uma conduta que diferencia os sexos.

Mas, como alcançar a liberdade se a opressão obceca qualquer chance de conceber outras alternativas? Ou seja, como as mulheres se tornarão sujeitos se sempre foram reduzidas a objetos – fazendo com que o sentimento de tal posição fosse tão amplamente velado? 

Ninguém está tão fechado em si mesmo que não consiga sair da condição imposta. Todos nós temos a possibilidade de reflexão e de fazer do pensamento a primeira faísca de liberdade, de transcendência. Mesmo em situações aterradoras, somos capazes de refletir sobre nossa condição existencial.

A liberdade individual é precondição da liberdade coletiva, e a liberdade coletiva é a garantia da manutenção da liberdade individual. Assim sendo, o feminismo é a junção de liberdades individuais agregadas à liberdade de um grupo maior. É um movimento que o impele a um futuro aberto, porquanto a sociedade não é impassível de mudança. E esse futuro aberto é garantido pela liberdade coletiva, a qual acolhe os indivíduos livres.

Em resumo, a existência humana rege todos os modos de vida ao qual o indivíduo se lançou, ao contrário de virem prescritos ao nascer, numa “Tábua de Moisés das essências”. A liberdade é a afirmação da “antiessência” que somos. Estamos sempre na iminência do ultrapassamento do aqui-e-agora. 

O feminismo é a garantia de cravar de vez na história da filosofia e da humanidade que a existência, de fato, vem antes de qualquer essência primeira que possam querer nos vestir. E as mulheres passarem do estatuto exclusivamente de objetos para o estágio de, também, genuínos sujeitos, mostrando que se construir é possível e que só por meio da existência é que se chega a isso.

As mulheres, primeiro, existem. Só depois elas se definem tal como se pretenderem. Não há absolutamente nenhum grilhão anterior à sua existência – nem biológico – que a impeça de exercer sua transcendência, sua liberdade.

Só a construção de uma cultura da negação, que mortifique qualquer pretensa essência separadora, por meio de uma educação cidadã e de revolução permanente, é que as mulheres se elevarão a um patamar que não mais as subvertam.

Vale consultar as obras originais: O segundo sexo, Por uma moral da ambiguidade (ambas de de Beauvoir) e O existencialismo é um humanismo, de Sartre. Para um comentador mais didático, indico Jack Reynolds, em sua obra Existencialismo.

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