Quando a luta se transforma em ideologia

MARTÍRIO DE SÃO SEBASTIÃO -
Honoré Daumier
Em tempos de embates acalorados entre as questões humanas e sociais, é de importância imprescindível priorizar a cautela no trato com o que se pensa. “Cautela”, aqui, no sentido de uma análise responsável que não desemboque no ódio puro e simples.

Há diversas “organizações” sociais – que em sua origem têm um fundamento autêntico e necessário contra a opressão e exclusão – que caíram no erro suicida da ideologia. 

Concebo o conceito de ideologia como um conjunto de ideias preconcebidas que são utilizadas para enquadrar todas as explicações possíveis e regular o pensamento dos inclinados à sua vertente. Dessa forma, os valores, a compreensão, o método, etc., de quem os detêm são elaborados nesta “oficina” de pensamento exclusivamente delineado.

Entidades que tratam de direitos humanos fundamentais, ou apenas aqueles que vislumbram uma ideia de progresso ou de conservação, muitas vezes abrem seu próprio abismo por não serem capazes de “desintoxicar-se” da ideologia do grupo.

Com os conceitos forjados dentro de um estrito “campo ideal”, sem abrir exceções para outros tipos de interpretação e compreensão, os grupos ideológicos disseminam preconceitos idênticos sobre os diversos tipos de comportamentos.

Antes de enquadrar situações distintas em uma forma conceitual pré-imposta, é preciso exaurir todas as possíveis interpretações para o evento. A cautela do início do texto remete-se a isso.

A compreensão (co-apreensão) de um determinado acontecimento requer a investigação minuciosa das suas razões (raiz). Encaixilhar tudo em um campo único e de interpretação é cometer assassínio à complexidade em que somos inseridos.

É preciso levar a sério o que afirmou Merleau-Ponty, em Elogio da filosofia: não há verdade sem que haja o outro. Isto é, para que cheguemos a alguma verdade primeira ou última, é necessário que levemos em conta as ações de outrem, e suas motivações. Só descobrimos a verdade, então, com a complexidade do outro.

Não é possível delimitar ações como se elas se relacionassem necessariamente com o conjunto de ideias predeterminado. 

É preciso, antes, que considere o outro enquanto um agente que possui um contexto individual, familiar, social e uma relação íntima com a história. Só a partir desta consideração prévia é que podemos nos relacionar com a “verdade” do fato.

A ideologia, portanto, também é a negação da existência do outro enquanto um complexo intencional e de significações, ou seja, enquanto aquele que mantém relações que extrapolam o simplismo do manual de ideias de um certo grupo.

Por fim, é preciso que os grupos se desnudem dos preconceitos – no sentido pejorativo do termo – que os envolvem em extremismo e inflexibilidade.

A ideologia mata, mesmo quando em sua originariedade haja respeitáveis motivos de liberdade e de inclusão.

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