OS ATRIBUTOS DA CIÊNCIA | Chardin |
De maneira muito breve: o Círculo de Viena defendia uma investigação
completamente empírica do mundo, ou seja, havia uma apologética sobre as
ciências exatas e naturais. Toda forma de conhecimento, para seus defensores,
deveria passar pelo crivo da metodologia de observação dos fenômenos naturais e
das deduções lógicas.
A concepção científica do mundo
foi o título de um manifesto escrito por Hans Hahn, Otto Neurath e Rudolf
Carnap, em 1929. Tal escrito era dirigido ao principal representante do Positivismo
Lógico do Círculo de Viena: Moritz Schlick. O texto possui uma postura
combatente à metafísica e às inferências filosóficas sem embasamento
observável. Em certo sentido, esta postura é válida, porquanto devemos combater
imprecisões teóricas. No entanto, o reducionismo cientificista pode ser uma
armadilha à compreensão de uma amplitude na qual a própria ciência se engloba.
As razões primeiras de uma ciência, no sentido de episteme grega, possuem suas raízes cravadas no solo da vivência
humana perante o desconhecido do mundo e de todas as coisas.
Quando os autores do Manifesto afirmam que a “atuação dos físicos Mach
e Boltzmann em uma cátedra filosófica torna compreensível o fato de reinar
vívido interesse pelos problemas epistemológicos e lógicos ligados aos fundamentos
da física”, podemos conceber, numa instância originária, que a física se ergue
sobre o solo do mundo vivido. E este mundo da vida carrega consigo o peso de
significações complexas próprias do homem. É nele em que reside o grande
problema filosófico e das ciências humanas.
No tópico 2 do texto há a
afirmação de que “tudo é acessível ao homem; e o homem é a medida de todas as
coisas”. O conceito “homem” é obscuro – o que o positivismo lógico abomina. É
um problema ainda vivo na filosofia e nas ciências humanas. Nem na sociologia,
nem na psicologia, por exemplo, há consensos. Dessa forma, é perceptível que o
Círculo de Viena não interroga o homem – o de ciência ou o comum.
Ou os autores partem de um pré-conceito
“homem” ou se eles o definem como “animal racional”, ou qualquer outra
definição, necessariamente terão de desembocar em explicações no interior de
diversas áreas, inclusive a metafísica, que extrapolam a análise lógica pura.
O homem é aquilo que enreda o próprio saber científico por meio do
qual ele se expressa. É preciso, assim, interrogá-lo fora da ciência
naturalizante.
Quando, porém, os autores defendem que a única tarefa da filosofia é
esclarecer problemas e enunciados via análise lógica das proposições,
reduzem-na à mera decifração de conceitos. Ainda assim, como é expresso no
texto, à filosofia não cabe propor novos enunciados próprios. De acordo com
isso, o pensamento filosófico está extinto, uma vez que se torna uma mera
atividade decifratória de signos.
A concepção científica do mundo, para os positivistas lógicos, segundo
o texto em questão, é de caráter positivista e empirista: só é autenticamente
científico o conhecimento que se basear na experiência empírica – ou seja, no
imediatamente dado e verificável – e ser dedutivamente decifrado por meio de
análise lógica.
Esta posição materialista recai no que Husserl denominou de atitude natural: a crença na percepção
imediata do mundo como nos é aparecido. Este fato naturalizante nega a questão
fundamental de como nos relacionamos existencialmente com aquilo que
percebemos.
Cai-se, com isso, no que Merleau-Ponty afirmou n’O visível e o invisível, de que a expressão mais dogmática da
ciência é pressupor e sustentar-se graças à fé perceptiva no mundo, ao invés de
dissipar suas obscuridades interrogando-a.
Talvez isso explique, em partes, o motivo das constantes revoluções científicas – as mudanças de
paradigmas.
A atitude natural é a
afirmação da negligência do perguntar-se, isto é, só investigando o que
significa efetivamente ser humano é
que podemos fundamentar uma unidade entre o pensamento científico e a verdadeira
filosofia. De mãos dadas à pergunta sobre o homem, a questão sobre o mundo da
vida faz-se necessária. É aqui onde se fundamenta a necessidade da ciência.
Esta pergunta autorreferencial não é concebida pela metodologia
mensurável das ciências exatas, naturais, nem lógicas – no sentido puro. É,
antes, investigar o modo-de-ser humano, movido pela existência significativa
que o engloba e o arrebata.
Como defendeu Hilton Japiassu, em Introdução
ao pensamento epistemológico, a filosofia “cava suas fundações, para saber
sobre que solo a ciência se constrói. A presença do homem ao mundo é este solo
primitivo sobre o qual se edifica a ciência.” E ainda prossegue: “Há, no homem,
todo um fundo de existência, um ‘vivido’ que é sujeito e que faz dele um sujeito não-objetivável pelo conhecimento
científico.”
É preciso conceber que o pensamento científico é um dos modos-de-ser
do homem, pelo qual ele constrói uma vivência peculiar e correlativa à forma de
enxergar o mundo. As ciências têm peso determinante no espírito de uma
civilização, corroborando para o fato de fazerem parte da dimensão
significativa humana. Por isso, cabe pensá-las fora de seus próprios domínios.
A filosofia, diferentemente do que pretendiam os positivistas lógicos,
consiste na constante indagação sobre o ser-homem e o mundo que é comum tanto
ao homem ordinário, ao cientista e à sua ciência que é produzida. É na unidade entre a matéria do mundo e a
humanidade do homem que versa o pensamento filosófico – sem deixar de pensar a
própria ciência e seus métodos.
Para citar Habermas, em Pensamento
pós-metafísico, o positivismo lógico “encaminhou a filosofia na pista
estreita da metodologia e da teoria da ciência, em qualquer destas reações a
filosofa parece ter abandonado a sua especificidade – a saber, o conhecimento
enfático do todo”.
O ato de fazer filosofia compreende o pressuposto de que o
conhecimento científico não é absoluto. O interesse pelo sentido do conhecer da
ciência é papel do pensamento filosófico, porquanto a investigação científica,
originariamente, relaciona-se à condição humana do saber. E esta condição
humana, bem como a finalidade do que se apreende, tem sua fundamentação como
tarefa do filosofar.
Em contraposição aos participantes e simpatizantes do Círculo,
metafísica não é o mesmo que “teologizar” – e, por isso, o combate positivista antimetafísico
–, mas perguntar pela relação do homem, anterior ao cientista, com o mundo em
que vive. Ela – a metafísica – autentica-se quando aquele que interroga o mundo
e as coisas está também problematizado no cerne destas questões, como quer
Heidegger, em Que é metafísica?. É
uma interpretação da vida e de nós mesmos
– em contextos que o naturalismo não os alcança.
A filosofia não nega a ciência, mas uma e outra se complementam em
aspectos bem delimitados de onde uma começa e outra termina. É neste diálogo
perene que a compreensão do mundo, físico e humano, pode ser vislumbrada. Os
diálogos que se mantêm entre uma e outra “exigem que se determine hoje de modo
novo, o nexo entre filosofia e ciência”, afirma Habermas em sua obra aqui já
citada.
A filosofia que defende uma visão cientificista do mundo é uma
autocontradição, uma vez que filosofar não perpassa pelos ditames “mensuráveis”
tais quais transcorrem os objetos científico-naturais. Assim, filosofar
seriamente, para o dogmático do cientificismo, se caso fosse possível, em
princípio, parece ser a negação do que defende, tendo em vista que a filosofia
está do lado de fora de questões cientificamente metódicas.
A atividade de decifração que os positivistas vienenses defendiam não dá
para ser denominada de filosofia, mas de qualquer outra atividade técnica –
talvez dentro das Letras ou da Filologia se encontre.
A ciência irrefletida, sem a devida preocupação filosófica universal
de como se estabelece seu significado para a existência humana, enreda-se na
crise constatada por vários filósofos. Husserl a constatou na Crise das ciências europeias e a
fenomenologia transcendental; Ortega y Gasset, em A rebelião das massas. Outros tantos pensadores também se
preocuparam com esta questão.
Por fim, para estimular a reflexão, deixo uma citação de Francis
Wolff, da sua obra Nossa humanidade: de
Aristóteles às neurociências:
“Nenhuma Ciência pode mostrar que ‘o homem é um animal como os
outros’, quando mais não seja porque seu ‘dito’ seria contradito por seu
‘dizer’: essa proposição refuta-se a si mesma. Se for verdadeira, é falsa. Se o
homem fosse um animal como os outros, a Ciência teria razão de dizê-lo; mas se
a Ciência tiver razão, é porque o homem é capaz de ter acesso a um modo de
conhecimento confiável, a Ciência, que o distingue de todos os outros animais,
e isso provaria, portanto, que a Ciência está errada; ele não é um animal como
os outros, é o animal capaz de Ciência.”
Portanto, a naturalização do positivismo exclui a possibilidade de
concepção do ser que é capaz de produzi-lo e de ser-cientificamente. Os
impactos desta irreflexão sofremos na vida social, não no restrito discurso de
metodologia científica.
Sem a problematização do caráter humano, a ciência enclausura-se em seus instrumentos sem a presença daquele que a torna possível, tal qual a imagem que ilustra este texto.
Talvez seja oportuno, aqui, parafrasear um ex-professor meu, de
Lógica: “falar de Positivismo Lógico é ‘bater em cachorro morto’.”
Comentários
Postar um comentário