“Que essa liberdade, porém, não se torne desculpa para vocês viverem satisfazendo os instintos egoístas. Pelo contrário, disponham-se a serviço uns dos outros através do amor.” (Gl, 5:13).
TOBIAS CURANDO SEU PAI CEGO | Benjamin West |
“Não existe bondade sem misericórdia e nem virtude sem perdão”. Foi ao assistir ao filme À Moda Antiga (Old Fashioned, 2015) que me deparei com essa passagem. Esta assertiva diz respeito à moral cristã.
Não sou teólogo nem conhecedor da teologia. Mas, penso que a moral cristã genuína – não as que são pregadas hoje, a qualquer modo – leva mais em consideração o Outro que muitos tratados filosóficos já escritos.
Não quero fazer juízos de valor referentes ao cristianismo por dois motivos: 1) tenho minhas ressalvas e 2) não sou estudioso do tema. Como o título expõe: são considerações primárias.
Aristóteles, o primeiro grande sistematizador de uma ética, depositou praticamente todos seus esforços em definições. Parece ter posto o agente moral em tanta evidência que se esqueceu de lançar o olhar sobre a outra parte, ou seja, sobre o mundo e sobre os outros.
Não existe ética – reflexão sobre a moral e, por conseguinte, constituição de um modo de viver – quando eleva demais o agente e obceca o Outro. Só existe ética quando a bilateralidade, que se forma pelo agente e pela alteridade do outro (sem ser redundante), está posta como campo originário de qualquer disposição moral prática.
Não há como pensar a moral sem pensar a questão do outro; sem concebê-lo como o próprio possibilitador de tal pensamento. Sem o outro não há dispositivo que fundamente uma vida ética.
O Bom, talvez, só seja possível a partir de uma ambivalência que o produza. Em outras palavras, o Bom precisa ser mais que um mero conceito, e, sim, que seja o produto de uma vivência que tenha a misericórdia como princípio de ação. Assim, o Bom só aparece após a atitude moral, e, nunca, de antemão posto como sendo-em-si-mesmo.
Dessa forma, parece que a primeira parte da passagem do filme faz razoável sentido. Parece bastante plausível que “ninguém é bom por ser bom”, mas por ações que formulem sua bondade.
Seguindo este itinerário, a bondade não se assemelha à Ideia suprassensível do Bom, como em Platão, e nem à sua autossuficiência, como em Aristóteles (Ética a Nicômaco, 1097a-b). Ela é resultado de um debate Eu-Outro.
Do mesmo modo, me parece, acontece com a virtude. Nos tratados filosóficos que lidam com este tema específico, é comum haver uma superelevação do agente moral em detrimento do problema do Outro.
De Aristóteles a Cícero, por exemplo, as virtudes são tratadas como nobres características a serem cultivadas. E essas, para cada filósofo, são elencadas a fim de proporcionar um comedimento e/ou meio-termo. Contudo, ainda assim, o problema do Outro torna-se irrelevante.
O meio-termo ou o comedimento a todo custo só dizem respeito a quem os promovem. É uma forma de tentar negar-se enquanto falho, imperfeito, inacabado. O perdão – não só para com o Outro, mas para consigo próprio –, ao contrário, é uma forma de compreender-se enquanto errante e vivente de um mundo incompreendido e no qual há maldade e sofrimento.
Em um mundo no qual há as mais diversas formas de mazelas, o homem corajoso, constante, despido de temor, de tristeza e de alegria exacerbada, como defendia Cícero, em A virtude e a felicidade, transforma-se em uma ilha de gelo, na qual se torna inconveniente qualquer tentativa de caminhada.
Em suma, ao pensamento ético, em grande parte, falta a inserção da realidade da alteridade como “proponente” de uma ação daquele que age eticamente. A moral é sempre de via dupla: jamais há ação moral sem haver um problema que está do outro lado a ser correspondido. Por isso, a ode cristã ao amor como mantenedor da unidade do Espírito e da convivência.
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