Boécio e a Fortuna

FILOSOFIA CONSOLANDO BOÉCIO E 
VIRANDO
A RODA DA FORTUNA | 
Henri de Vulcop (?)
Este é o primeiro texto de uma série de quatro – como já exposto no texto anterior.

O Livro II d’A consolação da filosofia, de Boécio, objeto deste primeiro escrito, trata de um tema peculiar às vertentes filosóficas que versam especialmente sobre a tranquilidade da alma, a saber: o acaso, a sorte, a Fortuna.

Desesperado diante da sorte que caiu sobre si, condenado à morte e submetido a suplícios, Boécio reclama do destino e o acusa de injusto. Segundo o pensador medieval, ainda no Livro I (I, 8), o fardo mais pesado que a Fortuna pode afligir é que aos olhos do povo esteja sendo castigado quem na verdade é inocente.

Boécio, no entanto, dá voz à personagem da Filosofia em busca de sua consolação interior. 

A Filosofia (II, 1), dirigindo-se ao condenado, afirma que o terror que se abateu sobre ele é devido ao novo e extraordinário, pensando que a Fortuna mudou de forma apenas para si. Contudo, o caráter permanente da Fortuna é ser inconstante. Ela é a mesma de quando, outrora, prometia miragens.

A Fortuna tem uma dupla maneira de se “expressar”. Ora ela é conveniente, ora ela esboça completamente seu semblante verdadeiro. Quando conveniente, ela é dissimulada, porquanto engana aquele a quem convém; quando revela seu verdadeiro semblante, ela se desmascara e transparece sua completa inconstância.

O ponto positivo da revelação da face verdadeira da Fortuna é que, uma vez desnuda, o indivíduo reconhece seu caráter maleável. E, por isso, tem a certeza de que o engano e a incerteza quanto a ela se esvaneceram, não sendo mais possível cair em suas armadilhas.

A Fortuna tem a capacidade de passar de um extremo a outro: ora leva o indivíduo ao completo engano, ora o leva ao abismo do desespero.

A Sabedoria é, segundo Boécio, dando voz à Filosofia, a avaliação da finalidade de todas as coisas. O deixar-se corromper pelas vicissitudes da Fortuna e de seus desígnios decorre da falta de sabedoria.

A própria investigação sobre a Fortuna, bem como sobre todos os outros temas da obra, recai sobre a égide da Sabedoria.

Voltemos à Fortuna.

“Se confiasses teu barco ao sabor dos ventos, não navegarias para a direção desejada, mas para onde eles te levassem.” (II, 1).

Sem a aplicação da Sabedoria para avaliar a finalidade das coisas e das ações, a revelia se torna o princípio do acaso, outorgando à Fortuna a “liberdade” para a prática de sua conduta.

É ignorante buscar a constância incorruptível da felicidade. Toda felicidade terrestre – diz Boécio – traz consigo preocupações, de modo a não haver nenhum homem completa e verdadeiramente feliz. Para toda felicidade atrelada a bens materiais há um limite.

Quando um homem é muito rico, ou se envergonha por sua origem ou se preocupa em perder suas posses. O fato é que, quando se busca a felicidade por algo que está fora de si, uma preocupação sempre vem acompanhada. Isso porque a instabilidade das coisas de fora, por estarem fora de nosso total controle, sempre carrega consigo a possibilidade de sua derrocada.

Assim, mesmo para aqueles a quem a Fortuna favorece, num certo momento, a felicidade é tênue e se esvai com a menor adversidade.

A felicidade, portanto, independe da Fortuna, sendo preciso, para isso, que o indivíduo seja senhor de si mesmo. Se isso for o caso, ou seja, se o homem conseguir ser senhor de si mesmo, por meio da Sabedoria, ao medir os fins de cada coisa, a felicidade suprema será guiada unicamente pela razão.

Sendo a felicidade o supremo bem guiado pela razão, é notório que a Fortuna, não sendo produto da razão, não tem nenhum conhecimento da natureza da felicidade.

Sendo a busca da felicidade e a Fortuna de naturezas distintas, e a primeira estando sob o senhorio do próprio indivíduo, infere-se que a última não deve ter precedência alguma. É algo que não está ao alcance humano, e, portanto, deve ser ignorado.

Na Fortuna não se pode buscar nada que seja intrinsecamente bom ou mau. Ela beneficia, ao mesmo tempo, pessoas boas e pessoas más. Assim, ao beneficiar pessoas boas, ela não pode ser má; e, ao beneficiar pessoas más, ela não pode ser boa.

As verdadeiras virtudes, de acordo com Boécio, só devem ser buscadas e encontradas naqueles únicos que podem exercê-las: os homens. O destino, o acaso, a Fortuna não consagram em si o verdadeiro bem nem o mal.

A Fortuna é sempre instrutiva quando revela seu caráter cruel. Ao fazer isso, não engana o homem com uma suposta felicidade.

É apenas por meio de uma Fortuna desfavorável que os homens tendem a voltar ao caminho de busca do verdadeiro bem. A ignorância e cegueira cessam com a revelação da face mais indigna da “sorte”.

A lição que Boécio nos deixa, neste primeiro capítulo temático, é que devemos buscar o que as coisas nos transmitem ou são por elas mesmas. Isto é, precisamos fazer da Sabedoria a ponderação e análise necessárias para enxergarmos a natureza das coisas: o que são intrínsecas a elas e o que as extrapolam.

Em suma, não devemos imputar ao resto aquilo que de mal foi imputado a nós. Devemos ser senhores de nós mesmos, praticando aquilo que é virtuoso por si e negando o mal. Apenas no terceiro texto desta série é que veremos por que o bem é preferível ao mal, segundo Boécio, no Livro IV.

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