Da fragilidade de ser ateu


ALEGORIA DA CRIAÇÃO DO MUNDO | Domenicus van Wijnen
O ateu é todo aquele que “jurou” fidelidade e lealdade às ciências empíricas. Seu discurso não vai além do que tais ciências proferem.

O ateísmo, para se afirmar honestamente, não pode ser apenas a crença na inexistência de um deus. Ele deve ser aquilo que o próprio termo que o designa propõe: a-théos, ou seja, negar Deus. Deus, aqui, refiro-me à sua concepção ampla, como princípio de tudo, sem me ater a definições religiosas.

Afirma o ateu: “Deus não existe”. Ora ele defende isso porque não há evidência material para tanto, ora porque a ciência não precisa recorrer a Deus para explicar as coisas do mundo.

O ateu crê que não existe um fundamento último do mundo apenas por extensão do conhecimento que tem das ciências – nada ele desse fundamento entendendo.

A negação de Deus do ateu comum – digo, do ateu rebelde, que apenas quer crer que não existe Deus – é apenas uma pseudonegação, porquanto à ideia “Deus”, para ele, já está pressuposta a ideia de inexistência. Assim, ele apenas reproduz um preconceito, em seu sentido literal.

O ateu mais sério, aquele que mostra as fragilidades dos mais diversos argumentos em prol do divino, nega apenas uma faceta, a saber: interpretações humanas sobre a divindade (argumento ontológico, argumento moral, argumento do mal, concepção do Deus cristão, etc.).

O ateu não pode negar Deus porque ele mesmo desconhece o fundamento do mundo. Toda negação (não-ser) deve se ancorar numa dimensão de positividade (ser). Se o ateu não consegue, ao renegar Deus, mostrar seu inverso – ou o princípio de tudo – sua negação é vazia.

A negação de Deus deve se ancorar em outra positividade. Pois, a noção deste Princípio comporta toda a existência do mundo. Ela é positividade pura, uma vez que é a possibilidade de geração até do pensamento que a pensa. 

A concepção de Deus não é a concepção de um ente que não tem relação radical com o mundo, para ser negado apenas por negar. Mas, sua negação, para ser completa, deve ser acompanhada de uma substituição explicativa que sustente o próprio mundo que ela antes sustentava.

Por exemplo, antes da física newtoniana ninguém ousou negar por completo a física aristotélica e deixar o mundo físico destituído de explicações das leis que o regem. Só com a noção de força gravitacional, elaborada por Newton, é que se pode perceber a fragilidade das teorias de Aristóteles.

Mesmo se alguma mente brilhante houvesse refutado a física do filósofo grego, e não tivesse colocado outras explicações em seu lugar, é óbvio que ainda assim as relações dos corpos físicos careceriam de explicação.

Da mesma forma que acontece com as leis da física, que são leis que explicam as coisas – e, portanto, positivas, ao modo que venho expondo aqui –, respeitando as devidas proporções, Deus também perpassa pelo mesmo problema. Ele é considerado como o Fundamento primário. Com isso, mesmo que o ateu negue este Princípio e não o substitua, o mundo permanecerá carente de explicação.

Dessa forma, novamente, para que o ateísmo do ateu seja literalmente ateísta é preciso que ele negue este Fundamento colocando outro, contundentemente, em seu lugar.

Do contrário, ou seja, se aquele que se autointitula ateu não conseguir esta façanha, então, no máximo, ele deve se contentar com o agnosticismo: afirmar a incapacidade de conhecer ou de negar, terminantemente, a deidade ou os fundamentos mais originários do mundo. Esta é a postura mais sensata para quem não quer admitir a existência de um primeiro Princípio.

Aquela afirmação à qual os ateus se reportam – “o ônus da prova é de quem defende Deus” – não cabe à classe ateísta. Porque o ateu afirma a inexistência de Deus. Ao afirmar a inexistência, precisa-se mostrar cabalmente em que sua postura se sustenta - sem somente refutar as características, porquanto são simplesmente interpretações teístas.

Só um agnóstico, que nem afirma nem nega um Primeiro princípio, é que poderia proferir dignamente esta sentença.

Sébastien Faure, na Primeira série de argumentos contra o Deus criador, contida no seu livreto Doze provas da inexistência de Deus, elenca argumentos filosóficos fortes acerca da impossibilidade de Deus. Contudo, como não poderia deixar de ser, tais argumentos partem de concepções particulares do divino, elaboradas pela limitação do intelecto humano no que concerne aos fundamentos do mundo: imutabilidade, perfeição, puro Espírito.

Nas Duas objeções capitais, hipotetizando possíveis argumentos teístas contra sua posição, ele cai naquilo que foi por mim mencionado acima: “nós não conhecemos suficientemente o Universo para afirmar que ele só pode ser efeito de uma causa necessária”.

Se Faure não consegue substituir o conceito de “Deus” – que se põe como fundamento primário do mundo, por outro fundamento ou mecânica – então ele também não pode negar definitivamente a primazia desse “alicerce” originário.

Não podendo ele comprovar que o mundo não é efeito de uma causa, tampouco ele pode afirmar que não existe tal ou tal causa.

Com isso, o autor é mais um que nega apenas conceitos elaborados pela teologia ou filosofia, e, em detrimento disso, tais conceitos podem ser incompletos e/ou equivocados.

Por pelo menos dois motivos o ateísmo que Faure reivindica não é sólido: (i) por ele negar apenas conceitos de Deus – e, nisso, há diferença entre fato e razão, sendo que os conceitos ou proposições se enquadram nesta última; e (ii) por ele desconhecer o próprio Universo, seja por carência dos conhecimentos das ciências empíricas, seja por limitação humana perante a Totalidade.

Assim, retomando o fato da negação apenas conceitual, Faure, embora negue filosoficamente as facetas de interpretação do conceito “Deus”, não consegue aniquilar a carência humana em relação à compreensão da Razão do mundo. 

As capacidades ou limites da razão não obliteram a necessidade das verdades de fato – aproximando-me de uma linguagem leibniziana (G. W. Leibniz). Isto é, mesmo que a razão humana encontre limites no conhecimento do mundo, não esgota a necessidade de haver explicações para este último.

E a ciência é movida por esse desejo metafísico que o homem – tanto o comum como o de ciência – tem em se compreender e compreender o mundo que o sustenta e que o envolta.

Enfim, todo pretenso ateísmo é um pseudoateísmo: ele desconhece aquilo que deveria ser posto no lugar do que ele nega. Se ele desconhece o substitutivo de sua negação, sua certeza é insustentável, tendo em vista que o vazio provocado é a ausência de qualquer possibilidade de verdade e de falsidade. Por consequência disso, o ateu, no fundo, é, no máximo, um agnóstico.

O ateu é alguém que não sabe, com a ilusória sensação de que sabe. E, se ele sabe que não sabe o que fundamenta o mundo, logo, ele não é ateu, mas, por definição, novamente, agnóstico. 

Prefere, o ateu, esperar na ciência a resposta para todo o ser. Assim, ele se assemelha ao religioso fiel, fundamentalista e dogmático, que prefere esperar em Deus toda a compreensão – de si e do mundo.

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