Boécio e a Felicidade

BOÉCIO E FILOSOFIA | Mattia Preti
Depois do texto introdutório e do primeiro texto conceitual, sobre a Fortuna, este é o segundo escrito temático sobre a obra A consolação da filosofia, de Boécio.

Aqui, resenhando o Livro III da referida obra, tratarei do Bem supremo, a saber: a Felicidade.

Afirma Boécio, dando voz à personagem da Filosofia, que não importa o caminho que os homens trilhem, mas sempre o buscam procurando um único fim: ser feliz. Mesmo aquele que comete algum mal, em algum momento ele conclui que encontrará algum resquício de felicidade proveniente de sua ação.

Para o pensador, a verdadeira felicidade – aquela vista em sonhos pelo coração – só é alcançada se a vista do homem não incorrer nas meras aparências.

Para dar complexidade ao seu pensamento, Boécio afirma que a felicidade é um estado de perfeição que engloba todos os bens.

É fato notório que muitos acham que a felicidade consiste naquilo que eles buscam mais que qualquer outra coisa. Alguns buscam riquezas para alcançar o poder. Outros, buscam o poder para conseguir riquezas, honrarias e celebridade. Ainda há aqueles que acham que nos prazeres reside a felicidade.

A riqueza não traz ao homem rico uma tranquilidade e satisfação perenes, uma vez que as posses não possuem a propriedade de não ser roubadas pelos outros. Com isso, o abastado está sempre na iminência de falência ou de ser enganado.

Além disso, a riqueza sempre requer a dependência, do rico, de terceiros, a fim de estes últimos assegurarem sua riqueza, para que haja um controle. Dessa forma, a riqueza traz ao seu possuidor uma preocupação constante.

Por outro lado, as honrarias ou os altos cargos podem, à primeira vista, serem vislumbrados como ícones da dignidade. No entanto, segundo Boécio, longe dos grandes cargos – tal qual a magistratura – fazerem desaparecer a corrupção, pelo contrário, a põem à mostra, tendo em vista que não é impossível que um mau caráter tome posse num cargo desse tipo. 

Não se pode conceber como as honrarias têm algo de bom em si mesmas, porquanto elas passam pelo crivo da opinião da multidão, que ora exaltam-na, ora rebaixam-na.

A glória ou a celebridade, por sua vez, é algo mais mesquinho de que tudo o exposto até agora. Alguém só adquire fama pelo juízo do outro. Isto é, minha fama não depende apenas da minha ação, mas do que o outro ajuíza de mim. Isso faz com que um homem célebre numa determinada comunidade ou povo se torne tão comum numa outra sociedade.

Os prazeres materiais ou sensuais (no sentido de sensações) também não podem ser o caminho da felicidade. Se eles o fossem, poderíamos afirmar que os animais seriam os maiores conhecedores da verdadeira felicidade, uma vez que vivem para satisfazer suas necessidades físicas.

Contudo, os prazeres sempre são acompanhados ou por uma sensação de saciedade ou por sofrimentos decorrentes dos exageros desses mesmos prazeres. Quando alcançada a saciedade, aquilo que era prazeroso acaba por não exercer esse mesmo papel naquele momento. 

Sendo assim, o prazer não pode ser denominado como a verdadeira felicidade. Mesmo se alguém defender que ele precisa ser sempre buscado ou atualizado, ainda assim não é verdade que ele é um Bem supremo, pois, quando não for possível essa busca ou atualização, esta impotência causará sofrimento.

Cabe, agora, sabermos qual a natureza desse Bem supremo.

Boécio assevera que se há felicidades imperfeitas e perecíveis, como foi demonstrado, é porque deve haver uma felicidade perfeita. Se assim não fosse, não poderíamos pensar numa felicidade apenas ilusória, porquanto seria preciso confrontá-la com aquela que julgamos perfeita e verdadeira.

Para ancorar o conceito de felicidade perfeita, o filósofo medieval lança mão da noção de Deus.

Afirma ele que os supostos bens tomados separadamente – tais quais: riqueza, honraria, celebridade, prazer – não podem desembocar numa verdadeira felicidade, porque são perecíveis.

O autor faz uma analogia com a criação do mundo. Afirma que no ato da criação, não havia elementos degradados e incompletos, mas que se tornaram assim apenas pelo esgotamento.

Assim, sendo Deus o princípio de todas as coisas, e este princípio abarcando todas as coisas completas e perfeitas, logo o Bem supremo, devendo ser algo perfeito, reside em Deus.

Com isso, como não poderia deixar de ser diferente para um bom filósofo medieval, a verdadeira felicidade só é possível se o homem buscar o divino, já que o soberano bem encontra-se nele.

Pela essência do soberano bem residir em Deus, o homem, ao buscá-lo, participa de Deus e, por isso, torna-se “semelhante” àquele que promove o Bem supremo. O homem feliz é, portanto, o homem que “participa” em Deus.

A Felicidade é o conjunto de todos os outros bens. Ela é o Supremo Bem. E a definição do conceito de Bem é: a essência e a causa de tudo o que é desejável. Ou seja, todo desejo decorre do objetivo de alcançar um bem, mesmo que aparente ou imperfeito.

O verdadeiro bem é aquele que é uno e indivisível, ou seja, que permanece o que é eternamente.

Todos os seres, assim, almejam aquilo que os preservam, negando tudo aquilo que os aniquile ou os dissipe. Dessa forma, as plantas se nutrem dos nutrientes essenciais à sua manutenção. Os animais, por meio dos impulsos naturais, se lançam àquilo que alimenta estritamente seus desejos. 

E o homem, único capaz de conhecer o verdadeiro bem, é este que é capaz de iluminar caminhos para livrar-se das aparências provenientes da ignorância da razão.

Em suma, o Supremo bem para Boécio, como podemos inferir da leitura do Livro III de sua obra, é aquele que conserve mais perfeitamente a unidade do homem. E esta unidade é conhecida a partir da participação que ele faz em Deus.

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