Boécio e o Mal


FILOSOFIA INSTRUINDO BOÉCIO SOBRE O PAPEL DE DEUS - Henri de Vulcop
Após os dois primeiros textos precedentes (Fortuna e Felicidade) sobre os capítulos d’A consolação da filosofia, de Boécio, este é o terceiro texto temático. E, como o título já denuncia, versará sobre o Mal.

No Livro IV da referida obra do pensador medieval, este último reclama que a principal razão das suas angústias é que, mesmo concebendo a existência de um ser bom que tudo comanda, o mal existe e, muitas vezes, o fica impune.

Entretanto, há uma incoerência neste capítulo no que concerne aos homens bons e homens maus. Segue-a:

A página 98 (IV. 3) traz: “é em virtude de sua capacidade que alguém é tido como forte, e fraco o incapaz.” (Ênfase minha).

Na página 101 encontramos (IV. 3): “poder-me-ias dizer que os maus são capazes de fazer grande número de coisas. Não o nego; no entanto, essa capacidade que eles têm não provém de sua força, mas de sua fraqueza.” (Ênfase minha).

É perceptível que ora há a afirmação de que o fraco (o homem mau) o é assim porque é incapaz, ora há a afirmação de que o fraco – que é, por definição boeciana, incapaz – é capaz.

Esta incoerência compromete parte da argumentação do Livro IV, porquanto é afirmado que os maus não logram êxito no alcance do bem por procurarem-no por meios não naturais. Se não logram êxito, como podem ser também capazes, como na citação acima?

Seria preciso rever a questão da capacidade e da incapacidade referente ao homem mau.

Ainda na página 98 é defendido: “há duas condições necessárias para a realização das coisas humanas: a vontade e a capacidade; se falta uma delas, a ação não se realiza de forma alguma.”

Se Boécio afirma isso, ou seja, se as ações só se realizam se, necessariamente, houver consonância entre vontade e capacidade, o filósofo não pode afirmar que os maus são incapazes e, ainda assim, fazem coisas.

Dado esse problema intransponível no texto, passarei a outra questão que permeia este capítulo e, penso eu, interessa bem: a questão da “participação”.

Esta “teoria da participação”, em Boécio, significa que participar de um bem é melhor que participar de nenhum. Em outras palavras, um infeliz, ao qual lhe faltam todos os bens, tem sua infelicidade atenuada quando lhe é atribuído qualquer bem.

Exemplo: os desonestos, que são maus, participam do bem quando lhes são imputadas punições – que são boas porque justas. Ao contrário, quando estes mesmos desonestos escapam das penas cabíveis, sua maldade é agravada com a impunidade somada à desonestidade, não participando, assim, de nenhum bem.

Esta “teoria da participação” tem respaldo no que Boécio chama de “lei eterna”. Afirma ele (IV. 7): “toma de modelo aquilo que há de melhor, e não terá mais necessidade de um juiz que te traga uma recompensa: estarás tu mesmo participando do melhor. Por outro lado, consagra-te ao que há de pior sem encontrar ninguém que te possa punir: serás tu que te precipitarás sozinho no abismo.”

Esta defesa de Boécio, no que se refere à participação no bem e à questão dos desonestos, recai em algo interessante, a saber: a piedade, o perdão, a misericórdia e, é claro, a justiça.

Defende o autor que é muito mais recomendável – num caso de condenação, por exemplo – suplicar justiça aos culpados do que àqueles que sofreram as más ações. Isso porque a pena atribuída ao malfeitor é uma chance de ele rever os danos causados e tentar se livrar do fardo de seus “vícios”.

Em contrapartida, segundo o filósofo, odiar quem cometeu um mal é um contrassenso. Sendo a maldade uma doença da alma – assim como as doenças físicas o são do corpo –, os malfeitores são dignos de lástima; não de ódio. Com isso, a maldade precisa ser tratada, e, não, vítima de mais um mal.

No entanto, há algo que incomoda Boécio: por que os bons são vítimas do mal? Ele mesmo é um exemplo para esta angústia, o qual foi condenado injustamente à pena de morte.

A resposta é obra de uma distinção entre Providência e Destino.

Providência é “a razão divina que reside no princípio supremo de todas as coisas” (IV. 11). Isto é, a Providência é a unidade que abarca todas as coisas do mundo de uma só vez, na qual habita o princípio originário de tudo o que há. É a “regra” universal das coisas, que rege o universo.

O Destino, por sua vez, é o movimento das coisas que são passíveis de mudança. Para tanto, o Destino se dá no tempo e no espaço, enquanto a Providência é imóvel. Em outros termos, o Destino é o desenrolar dos eventos no mundo, os quais necessitam de momentos e situações particulares.

Contudo, Destino e Providência são interdependentes, uma vez que o Destino é a realização, no tempo, daquilo que tem como origem o que a simplicidade divina fixou para ser realizado.

Por conseguinte, para justificar o mal ao qual os bons são impelidos – a exemplo do próprio filósofo –, Boécio defende o fato de que Deus, por meio da Providência divina, aplica o que convém a cada um a fim de haver um equilíbrio para que tudo convirja para o bem. Esta aplicação só é possível por meio do Destino, que é a realização dos fatos – originados na Providência – no tempo.

Tal equilíbrio permite que as coisas mantenham uma ordem semelhante à ordem geral do universo.

Quando a má Fortuna atinge um homem bom pode ser para barrar as possíveis extravagâncias da maldade ou para frear uma alegria prolongada que possa corrompê-lo.

Quando, por outro lado, a boa Fortuna atinge um homem mau, o qual possa gozar de suas benesses, talvez seja por este homem possuir uma índole tão brutal que a miséria ou a desonra total o fariam praticar crimes mais horrendos.

Em suma, o que podemos concluir do Livro IV da obra de Boécio é que, assegurado no pensamento teológico, o autor defende que o mundo tende à ordem geral, de tal modo que a sorte humana é “controlada” pela Providência divina a fim de não desampará-la ao acaso.

A ordem, o “contrapeso”, a justiça, o meio termo etc., são o norte da existência do mundo e dos homens, instituído pela Providência divina e posto em prática pelo Destino.

Portanto, a filosofia de Boécio – teológica, como não poderia ser diferente pela época em que viveu –, legitima a afirmação da teologia de que até os mais terríveis males são um caminho para um bem maior.

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