OS JOGADORES DE CARTA | Paul Cézanne |
Não é possível estabelecer uma verdadeira amizade em situações que requeiram algum tipo de vantagem de um sobre o outro. A política, como vemos frequentemente hoje em dia, é um exemplo que ilustra bem o que a amizade não é.
O exemplo da política, aqui, não tem objetivo exclusivista, ou seja, de que apenas essa prática não produz amizades. A ilustração serve como um prisma que pode ser estendido a muitas outras situações que não políticas.
Para Cícero, em sua obra Lélio, ou A Amizade, a amizade não provém de causas exteriores aos indivíduos que se dispõem amigos. Só se pode ser verdadeiramente amigo aquele que possuir consigo algo de intrínseco, que seja capaz de irromper amor.
As virtudes é o que proporciona a amizade entre duas pessoas. Elas são parte inalienável de quem as possui. É aquele “algo intrínseco”.
O amor que alicerça a amizade é uma simpatia (do latim: comunhão de sentimentos; ou, do grego: capacidade de sentir os mesmos sentimentos que o outro) recíproca. Ou seja, os amigos são “magnetizados” pela forma virtuosa de ser, o que conserva a natureza de ambos e da própria amizade.
A amizade pela virtude é fruto da natureza, segundo o filósofo latino – que, enquanto estoico, prezava pela conformidade à natureza –, porque ela é o que garante a estabilidade, a harmonia, a involubilidade.
Ser virtuoso é caminhar em direção ao bem. Alcançar o bem é, grosso modo, permanecer de acordo com os preceitos da natureza, sem violar aquilo que possa arruinar o homem.
Dessa forma, ser amigo é tornar explícita a irrupção de um amor desinteressado, de uma admiração mútua pelo que o outro carrega em seu seio, e que ninguém pode lhe arrancar: a virtuosidade.
Quando uma suposta amizade é baseada em interesses ou em cálculos do que se pode dar e receber, a menor mudança em relação aos interesses e às “trocas” compromete o laço entre os indivíduos.
Amizade é zelo, preocupação, norte, compartilhamento. Tudo isso pautado pelas virtudes, para que o caminho não leve um ou outro para o abismo. O abismo é o fim da estabilidade, o que não é da natureza.
Então, voltando à ilustração que mencionei no início do texto, a política pautada pelos interesses particulares dos políticos – e você pode expandir isso para qualquer lugar que lhe estiver mais próximo – não pode ser praticada em um grupo de amigos.
Quando os delatores se incriminam entre si, percebe-se que os interesses particulares ditam as conveniências, o que não está de acordo com o que foi exposto sobre a amizade. Esta última não pode ser ditada pela instabilidade dos interesses, mas ela mesma é um espelho do estável. Portanto, interesses e amizade se contradizem.
Só podem praticar este tipo de política aqueles que não forem amigos entre si, porquanto a desvirtuação de suas ações baseia-se na aquisição de vantagens e na consecução de delitos nocivos ao povo.
Quando Cícero afirma a primeira lei da amizade (XIII, 44), que é: “não pedir a nossos amigos senão coisas honestas”, vê-se que, no âmbito das falcatruas, o que prevalece é a desonestidade em proveito próprio.
Uma vez que se age na ambição de autopromoção, ao largo do certo e do errado, a amizade é excluída destas inter-relações, já que o amigo é o que norteia para o bem – e, o mais importante: o que se mantém no bem.
Em suma, os homens que negligenciarem as virtudes só acumularão “atrativos” externos a si mesmos. Estes atrativos são perecíveis no tempo e em relação à própria sociedade, restando apenas o indivíduo puro e simples. Se este indivíduo não possuir o que amar intrinsecamente a si, nada mais poderá torná-lo amável. Nenhuma amizade poderá ser construída sobre um corpo vivo, mas morto de virtuosismo.
Por fim, vale a reflexão de que um amigo não se faz da admiração de causas externas, mas de algo que constitui sua alma virtuosa.
A amizade é a luz que ilumina, a dois – porque mais forte –, o caminho do bem.
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