Sobre as abolições individuais

TRANSFORMAÇÃO | Joyce Huntington
Ortodoxia: uma opinião tida como correta, única e verdadeira. 

Já fui  e creio que ainda sou em alguns aspectos  um ortodoxo em relação a certas visões. Mas, a história humana é marcada por fatores diversos que não nos cabe apelar para uma única explicação.

Foi ao refletir sobre isso, sobre este caráter “maleável” de nossa história, que empreendi abolições de rígidas posturas minhas frente a vários problemas.

Assemelhando-me ao que Aristóteles afirmou, na sua Metafísica, de que a verdade não é alcançada por uma única perspectiva, penso que os detalhes da existência, hoje, não são elucidados nem por uma única perspectiva e nem por múltiplas. Sempre há algo além, encoberto, por vir, iminente – mas latente.

Aboli, de mim, a mais soberba das ortodoxias à qual me apeguei: o ateísmo declarado e semiativista.

O novelo da vida não se desenovela puxando a ponta do fio. Nas suas entranhas há muitas outras pontas que se dão para o ainda desconhecido. Declarar uma postura rígida referente a isso é outorgar-se um ignorante parcial.

Enquanto ateu convicto, li uma obra do francês André Comte-Sponville  que é ateu , intitulada O Espírito do Ateísmo. Foi ali que minhas pretensas convicções começaram a ser demolidas.

A partir da leitura deste texto, paradoxalmente, tornei-me mais tolerante ao diferente.

Percebi que a vida humana é muito mais do que aquilo que eu, ingenuamente, pensava ser  friamente logicizada, seguindo regras lógicas e naturais.

Não aboli a convicção ateísta por isso, especificamente. Aboli-a por ela desconhecer o que defende: não conhece o que substitui o deus das religiões.

Percebi  e não em função do ateísmo ou de sua renúncia  que compomos uma rede de ligações que não perpassa pela sensibilidade. Nosso mundo inter-humano é constituído de algo não palpável, que só é vislumbrado por meio de reflexões que passam ao largo das ciências empíricas.

A imponência e importância da Filosofia  dentre outras áreas  não estão na sua tarefa acadêmica de discutir ad infinitum conceitos de filósofos A, B ou C. Sua “utilidade” está na dimensão puramente humana, de refletir sobre aquilo que substancia nossa existência.

O mundo fisicalista é uma das dimensões de nosso existir. Mas suas mensurações deixam escapar aquele que mede. Quando o cientista mensura o tangível, sua ação é, primariamente, intangível, porquanto não faz parte do visível, do concreto, do observável.

Todo cientista age naquilo que ele não sabe explicar: por que a ciência? Esta pergunta, se levada às últimas (ou primeiras?) consequências terminará ao lado daquelas que questionam por que a vida. 

Em acordo com o que afirmou Max Scheler, em A Posição do Homem no Cosmos, percebi que a vida humana tem tanto de metafísica quanto de história. Ou seja, tem tanto do que não podemos ver ou medir objetivamente, quanto daquilo que podemos explicar por meios naturais.

E quando partimos para a metafísica, vemos que reduzir o mundo humano a explicações empíricas é destituí-lo da sua totalidade. Vemos que o mundo humano é muito mais profundo do que a superfície física.


As maiores excrescências estão dentro de nós. O mundo é o que é. Nós somos o que fazemos com o mundo e com nós mesmos.

Aboli e ainda tento abolir de mim sofrimentos que têm como causa eu mesmo. Quando transferimos para o outro aquilo que nos faz sofrer, dificilmente mudaremos este sofrimento. Muitas destas aflições eu que sou o autor.

Jung defende algo desse tipo, em Sobre Sentimentos e a Sombra. Afirma ele que tendemos a projetar no outro aquilo que nós somos, mas que repudiamos. 

Quando projetamos no outro certas maneiras de ser que, inconscientemente, nós possuímos, nos tornamos presas do efeito que essas atitudes causam. Porque tudo no outro é mais difícil de controlar do que em nós mesmos.

Percebi que nós temos um desejo de autocura. Procuramos  no outro, em nós mesmos, no Cosmos, no Infinito, num deus  medidas que nos tirem da angústia, do sofrimento. E só encontramos esta cura, mesmo que efêmera, em nosso íntimo. Somos o centro de tudo o que sentimos, mesmo que estejamos continuamente voltados para o exterior.

Se eu sou um ciumento descontrolado, por exemplo, não encontro este sentimento ou algo que o justifique por inteiro fora de mim. A cura deve ser por mim, e não por aquilo de que sinto ciúmes.

Assim também o é com diversos sentimentos com os quais nos deparamos cotidianamente.

Percebi que o mundo também não só depende de meus sentimentos, mas de uma convergência de outros, de situações, de instituições, de conhecimentos, de culturas, de saberes. Assim, aboli de mim grande parte do egocentrismo.

O egocentrismo só serve à arrogância de quem o empreende. E arrogância é o sentimento sobrepujado, no plano pessoal, de salvador, de dono da verdade, pai da humanidade.

Ainda há muito o que abolir.

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