Da carência que revela o fundamento

CEMITÉRIO SOB NEVE |
Caspar David Friedrich
Nietzsche não foi o assassino de Deus. Sua expressão “Deus está morto”, no aforismo 125 d’A gaia ciência, é uma constatação da sua época, persistida, sobretudo, desde o Iluminismo.

A Ilustração, como forma de dar luz ao caminho obscuro no qual o homem havia permanecido desde sua mais remota história, fez ode à Razão em detrimento do suposto obscurantismo. Investiu na tentativa de tirar o homem de seu então centro: o mito, a espiritualidade, a religiosidade, a busca pelo Transcendente.

A nova empreitada filosófica e científica do mundo, a partir das Luzes, deveria pôr de lado ou até mesmo extinguir Deus da concepção humana de mundo e de vida. E, assim, o mundo vem caminhando entre a exclusão do divino ou da espiritualidade e seu apego mais ferrenho.

O homem não se concebe solto no mundo, sem estar apegado a alguma “raiz” que o condicione ou o explique, mesmo que de forma superficial. É nesta perdição, no sentimento de desprezo, que o homem ou se fia no supermaterialismo da vida ou no mais absoluto Espírito.

As duas posturas apresentam problemas, dentre os quais: a perda do sentido (ou finalidade) da vida individual e coletiva  bem como a perda de um fundamento  e o esquecimento da realidade da vida vivida, respectivamente.

Mesmo que o homem de ciência ou o intelectual que defenda um materialismo estrito afirme que a busca pelo bem estar condiz com uma “lei” da evolução  e que, portanto, o bem é legitimado pela teoria evolucionária , a bondade e outras virtudes humanas não são frutos de instinto puro e simples.

O homem pensa a si mesmo. Depara-se com um mundo-aí para e com ele. Seu campo de ação se estende ao horizonte das multiplicidades perspectivas. Sua existência atual ultrapassa a mera aptidão evolutiva da preservação da espécie. O próprio homem, o mundo e as coisas perpassam pela relação significante-significado, ou seja, têm sentidos dentro da teia que é a existência humana.

Para o homem, o mundo é um assombro, um espanto, uma interrogação. E o si mesmo passa pelas mesmas condições.

O ultrapassamento dos instintos coloca o homem em destaque frente aos outros animais. O “destaque” não significa necessariamente “melhor” ou “privilegiado”; significa apenas “diferente”. É nesta diferença que podemos falar de uma antropologia, e não de uma zoologia.

Quando voltado a si, à sua condição, a seu estar-no-mundo, o homem se vê jogado em algo que se difere radicalmente dele: a concretude e indiferença das coisas e do mundo. Em outras palavras, o homem faz do mundo sua “posse”, algo por meio do qual ele tira seu sustento e seus prazeres.

Max Scheler, em A posição do homem no cosmos, afirma que: “se o homem [...] se destacou um dia do conjunto da natureza e tornou-o seu ‘objeto’, então ele precisa como que se voltar aterrorizado e perguntar: ‘onde me encontro afinal? Qual é em verdade a minha posição?’”

Para Scheler, estas questões fazem parte da origem da religião e da metafísica.

Apegado ou voltado a questões de profundidade como estas, o homem precisa de um fundamento que o faça encontrar seu lugar no mundo. Não encontrando esta resposta, ele está condenado a vagar pela indiferença hostil de onde habita.

Quando distanciado deste fundamento, o preenchimento da vida passa para as efemeridades cotidianas, como o consumo, que é uma forma de materialização do viver.

O homem não é constituído do saber científico-natural, somente. A ele pertence este saber, mas também aquilo que o escapa. Husserl, na Crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, pontuou este escape como questões pessoais/espirituais, a saber: a pessoa que age e padece, o que lhe acontece, como ela se posiciona perante seu mundo de ação (mundo circundante), o que a aborrece, o que a perturba, o que a alegra ou contraria.

A fragmentação do mundo, pelo conhecimento científico cada vez mais especializado, tem dissipado o homem de uma visão englobante, de unidade, do todo. E, dessa forma, o homem se perde nas indagações fragmentárias do conhecimento “atomizado”.

Para a grande massa, que não sabe mais onde se encontra na vastidão do mundo, deslocada do seu si mesmo, tende a preencher seu vazio de saber pelo consumo e outros prazeres transitórios.

Percebemos, no entanto, que a espiritualidade, em seu sentido mais amplo, não se esvaiu perante a visão científica do mundo. É só percorrermos com os olhos as prateleiras das livrarias e a disseminação de vídeos sobre autoajuda: o homem continua buscando entender-se e suportar o peso da vida. 

Esta busca vem tentar dar conteúdo à lacuna deixada pela indiferença do materialismo, que nada diz sobre a vida espiritual.

Se o Esclarecimento originou a saída do homem do obscurantismo da magia, deslocou a visão humana dos “porquês” e dos “quês” mais originários da vida e do mundo para o esmiuçar do “como”  mecânico e fechado aos fenômenos que se revelam ao homem.

Na Introdução ao pensamento filosófico, Karl Jaspers assevera que, para a ciência, as concepções de mundo que o homem já viveu são sem importância. Contudo, como um conjunto de enigmas que a ciência não esclarece, continuam com significação permanente, mesmo que latentes ou veladas.

Dentre estes enigmas, o mais primordial: Deus.

O enigma, como o próprio Jaspers afirma, é o que não se revela a nós, permanecendo oculto na interminável variação das significações. Dessa forma, o “como” da ciência objetivista e especializada não alcança os enigmas que povoam a humanidade desde os mais longínquos tempos.

Talvez alcancemos nossa mais alta espiritualidade na exata medida em que a perdermos. À medida que nos esvaziamos espiritualmente, temos a consciência de que nos distanciamos de nós mesmos. E, aí, é chegada a hora de retornarmos ao nosso centro. Não necessariamente por via religiosa, mas até mesmo por uma ciência honesta e totalizante. Talvez pela “atitude científico-espiritual” de que Husserl tanto falou na sua Crise.

A morte de Deus, em suma, é o encobrimento parcial de uma dimensão humana que permanece sob o véu da presunçosa autossuficiência do homem. 

Somos obrigados a conviver com a afirmação ambígua dos cientistas: ao mesmo tempo em que acusam a teologia de, com o conceito de Deus e do homem à Sua imagem e semelhança, elevar demasiadamente o homem dos outros seres, o concedendo privilégios, também promovem o perigoso e pretensioso domínio parasitário sobre a natureza, sob a égide da ciência.

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