O profundo esquecido

A ARQUEOLOGIA |
Giorgio de Chirico
O conhecimento sobre o homem  especializado ou mais abrangente  ainda mantém o humano na superfície do ser.

Conhecer o humano já pressupõe sua fatualidade, seu enredo na concretude do mundo. E, quanto à evolução, à narrativa evolutiva já está pressuposta a vida e, mais radicalmente, o ser  a efetividade de que há algo sobre o qual a narrativa é possível.

A constatação da limitação do homem, limite circunscrito na sua situação (situs) no mundo, é a barreira que dificulta (ou impossibilita?) o alcance mais radical do homem, da vida, do ser.

O saber mitológico, por exemplo, contém o produto de um espanto humanamente original: as questões sobre quem somos nós; de onde viemos; para onde vamos. Estas são partes do fundamento de nossas inquietações enquanto humanos.

O mito se pretende o oráculo para as questões metafísicas que imperam sobre o nosso mais íntimo centro. E nós só fugimos destas questões ligeiramente. Elas povoam nossos mais reflexivos momentos.

Outra questão metafísica de caráter originário  e que, por isso, tem a ver com a questão primordial: o ser  é: por que tudo em vez do nada?

A inversão que Étienne Bimbenet faz deste questionamento, em O animal que não sou mais, tem caráter metodológico para a sua investigação. Ele não quer saber por que tudo em vez do nada. Pretende saber por que o mundo para o homem em vez de o mundo para o animal (o homem se relaciona com a totalidade do mundo, enquanto o animal com seu espaço, seu ambiente atual).

Este inverter cai no trato com as coisas apenas a partir de sua concretude, caminhando na superficialidade de algo muito maior, uma vez que o homem, neste caso, já é.

Mas, não quero aqui entrar em nuances conceituais de autores. Nem pretendo falar de metodologias. 

Aquelas indagações levantadas expõem o caráter de “abandono” em que estamos no mundo, sem conhecer nossa origem e nosso fim.

O “abandono”, aqui, não quer dizer falta de sentido, mas a imersão humana no seio de uma abrangência incomensurável. E a consciência deste abandono nos põe diante da ausência de um fundamento originário.

A busca ou a “necessidade” deste fundamento não quer evidenciar a questão humana, simplesmente. Quer elucidar o ser-homem, mas, também, o que possibilita todo estar-aí, passado e por-vir – enfim: o ser, o ser do mundo.

O mito e as religiões têm esta característica fundamental de anseio humano. Têm a raiz no campo cosmológico  na sua amplitude abismal, distante de nós, mas que, ao mesmo tempo, nos envolve.

Todo o conhecimento das ciências e as questões da filosofia caminharam sobre a fina camada do ser, mostrando apenas uma faceta de tudo que já é em decorrência daquele crucial que o possibilita.

Mas estamos muito distantes de esclarecer o mistério, aquilo que permanece no lado oposto do que se nos revela, como defende Heidegger. E este oposto sempre haverá em detrimento da limitação perspectiva nossa.

Nenhum homem, que pensa, está livre de percorrer reflexivamente este insondável. Contudo, ele tem se distanciado cada vez mais do fundamento, enquanto se obceca constantemente com a fragmentação do conhecimento, com as tentações do consumo e com as possibilidades frenéticas da tecnologia.

Continuamos boiando na salmoura das aparências travestidas de saberes quase-definitivos, distantes da raiz e sem compreender o que é ser.

Em última instância, a questão do homem coincide com a questão de ser. Este é muito mais que existir somente, é a possibilidade de tudo que já foi, é ou está por vir. E um conhecimento radical do homem não se limita à sua concretude mundana, mas se reporta à gênese do mundo.

As ciências falam dessas três etapas, mas nada dizem sobre a questão elementar: por que ou o que é ser?

Tudo o que já foi, está sendo ou será tem seu fundamento último nesta “realidade permissiva”. O homem é parte deste “tudo”.

O homem, e tudo o mais, é porque há, atrás dele, o ser. Assim, ser permeia primariamente tudo o que se pretende cognoscível. 

É como Étienne Gilson questionou, na Introdução de O ser e a essência: “se, de fato, o ser é o primeiro princípio do conhecimento, como não estaria incluído em todas as nossas representações?”.

A primeira questão verdadeiramente filosófica é o ser. Tudo o que vir depois dela a pressupõe e não a esclarece. Toda filosofia que a negar continuará caminhando sobre a camada que reveste as profundezas do que é.

Em suma, o ser, visto da situação que se encontra o homem, não é uma questão puramente metafísica. Em consonância com esta “disciplina”, é preciso haver uma analítica da linguagem (filosofia analítica), uma vez que “ser” e “existir” também comportam questões semânticas e epistemológicas (conhecimento).

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