Uma questão de vida

O BIG BANG |
Tullio Mesi
A reflexão sobre o homem posto em sociedade, se radicalizada, nos leva à reflexão do fenômeno da vida. Da vida em geral. Não da vida do indivíduo que reflete.

O filósofo francês Rémi Brague não quer mais responder à questão central proposta por Albert Camus, em O mito de Sísifo: “vale a pena viver a vida?”. Ele inverte a questão para: “vale a pena dar a vida?”. Esta inversão é encontrada em seu livro Âncoras no céu: a infraestrutura metafísica.

O porquê desta inversão consiste no fato de “viver a vida” direciona o sujeito da pergunta para um individualismo: viver a própria vida. No caso de a questão ser sobre se vale a pena “dar a vida” exclui o sujeito de se voltar à sua individualidade. A reflexão sobre se vale a pena dar a vida perpassa pela vida em geral, sem estar atrelada a um “alguém”.

Assim, no Capítulo VI, de Âncoras no céu, Brague expõe um questionamento basilar que devemos nos fazer: “será que amo a vida na medida em que ela é vida? Ou na medida em que ela é a minha própria vida?”.

Amar a vida e amar viver não são sinônimos. Fazendo uma analogia, trazida pelo próprio Brague, desejamos que a justiça seja feita por nós, mas odiamos, muitas vezes, que ela seja feita em detrimento de nós mesmos. Se isso acontece, significa que não amamos a justiça enquanto justiça, mas apenas seu aspecto que nos contempla positivamente.

O sentido da vida, vislumbrado pela questão sobre o valor de dar a vida, só pode ser adquirido por meio de uma “metafísica forte”.

“Metafísica” não significa um mero “conhecimento além das coisas físicas”. Em sua concepção original, em Aristóteles, era a filosofia primeira, preponderante frente às demais disciplinas. Não significa um coroamento, uma superestrutura, inacessível aos homens. Pelo contrário, a metafísica é uma infraestrutura que deve fundamentar todo o saber: a filosofia primeira propriamente dita.

O empenho, desde o racionalismo iluminista do século XVII, na destruição do animal metafísico que é o homem, deixou este apartado da vida. O homem passou a ser o animal em situação, com o seu ápice no existencialismo do século XX.

O homem situado do existencialismo é um homem sem raízes profundas e sem fins (télos). O protoexistencialismo de Nietzsche já exaltava a abolição dos fins em prol de uma liberdade, liberdade do criar (conferir: Nietzsche, O niilismo europeu; Camus, O homem revoltado).

Em Sartre, a exaltação da liberdade chega ao cume, ao ponto de o autor proferir, em O existencialismo é um humanismo, seu mais famoso imperativo: “o homem está condenado a ser livre”.

Na preocupação com a sua situação  em por que sentir o que sente, por que fazer o que faz , o homem esqueceu-se de refletir sobre os fundamentos que o possibilitam viver. A vida, para ele, passou a ser a sua existência particular e a existência dos que o circundam.

Assim, a vida é apenas um acaso. Devemos vivê-la porque estamos, compulsoriamente, “a bordo”. Mas as razões para que continuemos a viver ninguém pensa. Ou, se pensa, não alcança uma resposta razoável. Muito menos encontra as razões primeiras para dar a vida, ou seja, procriar.

Mais que viver a vida, dar a vida requer uma razão mais profunda do que simplesmente viver a própria vida. “Dar a vida” é a manutenção de algo que, por si só, tem um valor inestimável. Com isso, um fundamento que o justifique não pode ser encontrado na esfera individual, do eu vivo minha vida.

Os que decidem continuar vivendo, mesmo acreditando que não há nenhuma razão “superior” que justifique tal convicção, carregam em si um “instinto vital”, que não necessariamente precisa ser consciente. Este “instinto” já foi, de certa forma, afirmado na teoria da evolução, com a adaptação e a seleção natural. Isto é, só há adaptação e seleção se a “vida valer a pena”, porquanto as duas remetem-se à sua manutenção.

Se o animal não precisa pensar sobre a vida para poder continuar a viver  e assim o faz , o homem precisa fazer esta reflexão porquanto o seu inverso é possível e latente: pensar a morte, o suicídio e também a decisão de não procriar é uma realidade humana.

É da vida arquígona que a filosofia precisa para fundamentar “a vida”. Esta vida arquígona foi o que Jean-Luc Nancy, em Arquivida, mencionou: “mais do que uma arquitetura do vivo falemos de uma vida arquiteta e, melhor ainda, arquígona, falemos de uma vida que produz a vida.”

Para um pensamento que se quer radical, estar situado já é estar no seio de algo que já se realizou ou se realiza. Mas que “algo” é esse? Ainda seguindo a esteira de Nancy, o vivo ou a vida não é simplesmente o vegetal, o animal ou o espiritual, mas tudo isso junto e ser o conjunto do conjunto. Enfim, “porque um todo vivo é um todo onde tudo existe em relação com tudo.”

Nas Investigações fenomenológicas, Renaud Barbaras questiona o que é o ser da vida, porquanto a consciência perceptiva provém dela, mas por meio de uma privação. Traduzindo o que Barbaras afirma: no homem, por exemplo, a vida e a consciência se distinguem, ao passo que essa é advinda daquela. A primeira é originária, radical e ampla, de modo que a consciência, por meio da limitação perceptiva, contém uma privação.

A privação da consciência, em relação à vida, consiste no fato de a consciência ser uma realização da vida, mas uma realização dentro dos limites da percepção humana. Assim, a privação da consciência  ou a humanidade do homem  significa “a vida menos alguma coisa”.

Tudo isso nos diz que a vida é premente, e, por isso, mais fundamental que a própria humanidade. Isto é, a auto-organização, a constituição dos seres vivos, ou seja, o “princípio de vida” já está, ele próprio, sob algum aspecto, envolvido no mundo, como pontua Nancy.

A necessidade de uma reflexão sobre a vida conduz o homem a seu lugar no seio “da vida”. Enquanto liberdade que é, paradoxal e conscientemente o homem se desvinculou dos impulsos mais originários que o mantêm como parte da vida. São os impulsos que encontramos desde os vegetais e os outros animais: o impulso afetivo (vegetal), o instinto (animal) e Espírito (homem), na delimitação de Max Scheler (A posição do homem no cosmos).

Tendo a vida esta premência, o seu valor, por meio da sua tematização, é uma questão de restituir ao homem sua verdadeira situação no mundo. Não mais uma situação nos moldes do desespero existencialista, que impõe ao homem sua reinvenção constante, mas em que sentido devemos preservar a vida e a humanidade como um todo.

“Viver a minha vida” não tem sentido se o valor do próprio viver não estiver embasado num valor fundamental que baseie toda a manifestação vital. A refundação de uma ética, hoje, perpassa por esta problemática da vida.

Mesmo que a passagem a seguir, de Barbaras, não tenha como motivo esta preocupação ética, ela ressalta a necessidade de a filosofia se voltar a esta temática: “a interrogação fenomenológica sobre o sentido de ser do sujeito leva a uma interrogação sobre o sentido da vida e, nesse sentido, a fenomenologia é necessariamente uma fenomenologia da vida.”

Esta “essência vital” é também uma inquietação de Hans Jonas, que a explicita na Introdução do seu livro O princípio vida: “o filósofo que contemple o grandioso panorama da vida em nosso planeta, e que se compreenda a si próprio como uma parte do mesmo, não se dará por satisfeito com a resposta [...] de que este imenso e incessante projeto, que através das eras avança em rodeios experimentando formas cada vez mais ousadas e sutis, nada mais é do que um processo ‘cego’.”

Uma das consequências práticas (se é que podemos assim denominá-la) da radicalização do tema da vida é a possibilidade de elaboração de uma ética fundamental, que reúna e reagrupe os diversos fragmentos contemporâneos das éticas plurais, que, muitas vezes, se contradizem entre si.

Em O princípio responsabilidade, Jonas afirma explicitamente o retorno à metafísica e à ontologia para reelaborar um fundamento ético: baseado na correlação entre Ser e dever.

Por fim, a tematização da vida é a temática do “todo vido”. Numa época em que o homem é o “homem da técnica”, urge a reflexão sobre os limites e sobre o essencial humano. Além do homem, a natureza implora que a consideremos, sob pena de nossa autoextinção.

Pensar a vida, para além destas implicações pontuais, leva o homem de volta à sua espiritualidade perdida ou na iminência de se perder, porque a vida não sendo meramente sua própria subjetividade, o leva ao primordial, ao elementar, ao originário, ao íntimo.

Se não quisermos que sejamos os predadores de nós mesmos, faz-se necessária a temática da vida. O transumanismo aponta como uma alternativa ao homem, justamente por sê-lo capaz de lutar contra a natureza e dela independer. Assim, deliberadamente, o homem está negando a vida em prol de outra coisa que ele ainda não sabe o que é.

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