Do que é preciso se livrar

SABEDORIA | Pino Daeni
Recentemente presenciei o sentimento de infâmia de uma mulher à hipótese de seu namorado/marido trabalhar em uma “Cerâmica” (fábrica de telhas e tijolos). Pelo menos no interior da Paraíba, nesta indústria impera o trabalho braçal pesado. Sendo assim, a soma da falta de oportunidade com a falta de formação dos trabalhadores faz com que estas indústrias recrutem o pessoal de “nível mais baixo”. Aí está a causa da “vergonha” desta mulher.

Na verdade, este sentimento partilhado da moça tem raízes mais profundas: a vaidade. Não é culpa dela, especificamente; mas da sociedade como um todo.

A vaidade, genericamente entendida, é aquele sentimento individualista de ser único e especial. Por isso, a vida do vaidoso tem de ser ornada por pessoas e coisas que partilhem das mesmas características.

As posses, tanto intelectuais quanto materiais, tendem a pôr quem as tem em um nível de afastamento daqueles que nada ou pouco disso possuem.

A aparência física, hoje tão bem cultivada, também tem o poder de “segregação estética” com tudo aquilo que não a acompanhar.

Mas, nada é tão libertador quanto o desprendimento do supérfluo. 

Trabalhar em uma indústria como esta mencionada não traz em si mesmo nenhum mal. O mal provém das opiniões daqueles que enxergam nesta labuta a diminuição da dignidade  dignidade esta talvez baseada em noção de sucesso ou boa reputação.

O pensador estoico Epicteto, um ex-escravo da Grécia antiga, defendia que, das coisas existentes, existem as que são encargo nosso e as que não são de nossa responsabilidade (Manual de Epicteto).

O juízo, o desejo, o impulso, a repulsa, por exemplo, são encargos nossos. As posses, a reputação, os cargos públicos etc., não são nossos encargos.

Podemos perder tudo aquilo que nos “orna”, mas ainda assim permaneceremos. O que é inalienavelmente nosso, aquilo que não nos pode ser saqueado, é nós mesmos, nossa alma.

As posses e as reputações só dizem respeito sobre o que elas são, mas nada dizem sobre quem o possuidor é em seu íntimo. Como o próprio Epicteto afirmou, nós não somos as posses que possuímos.

Enquanto o homem se apegar ao que ele tem e ao que os outros falam dele, nunca irá viver de forma livre, mas preso àquilo que não é da sua natureza. Isto é, as posses e a reputação são “ornamentos” que são totalmente casuais no homem. Assim, viver preso a eles é negar o que está o tempo todo consigo: a alma de homem.

Para falar como Cícero, no livreto A virtude e a felicidade, o homem sábio jamais reclama da sua sorte. É claro que esta afirmação requer um tratamento filosófico sobre o tema  o que não será feito aqui , mas, grosso modo, ela ressalta a importância de refletirmos sobre o que o homem necessita para ser quem é ou para ser feliz.

A recusa de posses que só dirão o que ele tem é a afirmação que o homem é muito mais do que aquilo que possui e do cargo que ocupa. 

Precisamos direcionar o olhar para a alma do Outro, e, o mais importante, precisamos deixar nossa alma se mostrar. No entanto, muitas vezes, para que deixemos transparecer nossa alma a outro, é preciso que tratemos dela. Ela precisa ser a aceitação de si e do outro, motivo pelo qual é possível a manutenção da humanidade e da inter-relação humana.

Em resumo, talvez a mulher envergonhada pelo possível cargo de seu companheiro ainda não tenha encontrado a saída da sua vaidade. E esta última é a sustentação do dispensável para a vida: neste caso, a reputação pela função.

O emprego ocupado não é uma característica que o homem traz consigo, impresso em sua natureza. Portanto, não se deve definir aquele homem pela função que ocupa. Assim como também não se deve defini-lo pelo que possui. 

O indivíduo é anterior a tudo o que possui, de modo que antes de possuir ele também era.

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