Não é pelo corpo, nem pela riqueza que os homens são felizes, mas pela retidão e muita sabedoria. (Demócrito, Fragmento 40).
DE VOLTA À FONTE | Coburn Hawk |
Vivemos, hoje, no olho de um furacão que nos arrasta sem que, muitas vezes, percebamos. É a tempestade da futilidade e do consumo.
O barulho, a aquisição e descarte de bens materiais, a exposição exacerbada de si etc., fazem do homem contemporâneo uma nova categoria da história da humanidade: o homo consumens.
Uma das razões que podemos elencar que torna o homem um voraz consumidor – de bens, de pessoas, de status – é o vazio que ele encontra em si mesmo. Em outras palavras, o homem não mais encontra dentro dele próprio aquilo que necessita para continuar a viver e a encontrar sua paz.
A busca exterior da paz e da completude só pode ser ilusória. Os bens ou as pessoas, que, naturalmente, estão fora daquele que os procura, são transitórios e extrapolam ao nosso controle. Ou seja: a paz que neles procuramos não depende de nós, mas deles.
Quando o que procuramos depende do outro ou das coisas, a heteronomia – termo contrário a “autonomia” – impera sobre nós. Isto é, passamos a padecer pela incapacidade que temos de controlar aquilo que queremos. Nós não somos donos – autônomos – do que desejamos.
Podemos entender a heteronomia, que é se deixar levar por aquilo que não possui, pelo que afirmou Boécio, na sua A consolação da filosofia: “se confiasses teu barco ao sabor dos ventos, não navegarias para a direção desejada, mas para onde eles te levassem”.
Quando deixamos o exterior, ou as coisas que estão fora de nosso alcance, nos “dominar” de alguma forma, nossa direção é guiada por ele, não podendo nós dispensar sobre ele nenhum domínio ou controle.
No caso dos bens materiais, a heteronomia se evidencia no descarte desnecessário. Expliquemos. Quando passamos a consumir descontroladamente os bens que surgem diariamente no mercado, nossa autonomia se perde na fluidez das novidades, de modo que somos impelidos a consumir o novo e descartar o imediatamente anterior.
O “velho” já não nos satisfaz mais. Assim, o novo é quem dita nosso desejo e nos faz inclinarmos a ele, perdendo nós a capacidade de ser autônomos, ou seja, de discernirmos o que nos é necessário e o que nos é acidental ou dispensável.
O descarte, portanto, é um sintoma de que a heteronomia nos governou: o nosso desejo está voltado para a novidade, a qual tornou “obsoleto” aquele último objeto.
No caso do barulho – das festas, das baladas, das mesas de bar –, o consumo destas formas de preenchimento não faz senão percebermos que o “momento festivo” é passageiro e, portanto, superficial. Se não trouxermos de volta a nossa autonomia, estamos fadados a ocupar nosso tempo inteiro com situações deste tipo – tornando-o uma dependência.
Nossa paz ou nossa felicidade, medidas por meio de consumos tais, não passam de uma miragem, que tentamos encontrá-la sempre ao fim destas experiências. Com isso, precisamos criar situações diárias para que possamos sentir algum prazer. Assim, vamos caminhando de experiência em experiência, dependendo sempre delas mesmas para que sintamos alguma alegria. Mas nem sempre é o caso. Mesmo quando o é, a alegria é apenas momentânea.
Com estas maneiras de buscar a felicidade, a virtude – que são, grosso modo, os meios de buscar a felicidade ou a paz – torna-se vício: praticamos os meio errados para a paz, tornando esta impossível de ser alcançada.
Estes exemplos de heteronomia serviram para falarmos do que nos é necessário, em primeiro lugar.
Talvez o mais eficaz antídoto à busca da felicidade por meios que nos escapam, como os elencados acima, seja a felicidade que encontramos na companhia inseparável e inalienável de nós conosco mesmos.
Quando passamos a olhar com maior rigor para dentro de nós aprendemos que o que realmente importa nos acompanha sempre: nossa alma. Saber compreender que é em si próprio que reside a felicidade é um ato libertador. Só assim, aos nossos olhos, os vícios se tornam o que são: supérfluos e absolutamente dispensáveis.
Em uma epístola a Lucílio, intitulada Da solidão dos filósofos, o filósofo Sêneca afirma: “pensa que nada é extraordinário a não ser a alma e que, para uma alma grande, nada é grande”. Isso significa que a grandeza da alma consiste em ela ser suficiente por si mesma. É nela que encontramos, em Sêneca, a medida da nossa felicidade e da nossa paz.
Também em outro filósofo latino, da nossa antiguidade, podemos encontrar semelhante defesa: “tem em si mesmo tudo de quanto necessita para ser feliz, eliminando do número dos bens tudo quanto está fora do seu poder” (Cícero, A virtude e a felicidade).
Devemos nos ater àquilo que está em nosso íntimo, sempre nos acompanhando: a presença intransferível de nossa alma. É com ela que sentimos o que nos faz felizes e o que nos aflige.
O que não é nosso, aquilo que nos escapa, não tem o poder de nos assaltar espiritualmente sem que permitamos.
O que seria do filósofo medieval Boécio, condenado à morte e submetido a torturas diárias (suplícios), se não encontrasse em si mesmo o conforto necessário para continuar lúcido?
Quando não nos damos conta que é em nós mesmos que encontramos a completude, a buscamos naquilo que jamais a encontraremos: nas posses, nas festas, nos bares e nos outros enquanto “produtos”. Tudo isso pode trazer alegrias momentâneas, mas a paz e a felicidade são maiores que meros momentos.
O homo consumens consome tudo, irrefreavelmente, pensando que encontrará o substituto de seu vazio. Mas não se dá conta que só encontrará quando olhar para dentro de si e perceber que tudo o que está fora não diz respeito a ele; e que a característica de fugacidade destas coisas externas é contrária à permanência de sua alma.
Tudo o que é fugaz passa, enquanto nós permaneceremos. Se não formos, nós mesmos, o que nos completa, a revelia em que a passagem destas coisas nos deixa nos põe em desespero.
Devemos refletir sobre o que é permanente (necessário) e o que é efêmero (acidental, dispensável).
Enquanto viventes, nossa alma nos toma e tem o poder de nos fazer suportar a nossa sorte; assim como também tem o poder de nos fazer perder frente às aparências de bondade que o mal se nos aparece.
O consumo exagerado de tudo e de qualquer coisa é um vício, o qual requer, pelo menos, as virtudes da sabedoria e da coragem para combatê-lo.
Em suma, a companhia necessária somos nós mesmos. É preciso que suportemos a solidão para que seja possível nos encontrarmos conosco e reconhecer que é no nosso íntimo que reside a possibilidade do feliz e do pacífico.
“Por que então, ó mortais, buscais fora de vós mesmos o que se encontra dentro de vós?” (Boécio, A consolação da filosofia, II, 7).
Comentários
Postar um comentário