Polícia do Paraná e alteridade

O RETORNO DO FILHO PRÓDIGO |
Rembrandt
A Polícia Militar do Paraná, em um edital para um concurso público, requereu a “masculinidade” dos candidatos. Após polêmica nacional, o órgão substituiu o termo e editou a definição.

Na versão original, pela descrição do termo, os candidatos deveriam possuir “capacidade de não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades, não se emocionar facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor”.

Um trabalho de segurança pública, de fato, requer que o indivíduo possua um certo grau de impassibilidade. O cotidiano de um profissional dessa área é mais desumano do que o de outros ramos.

Parece que o problema deste episódio constitui-se pela burocratização, estatização ou banalização da indiferença. Isto é, requerer tal coisa é pretender apático o indivíduo a serviço do Estado.

Quando o Estado impõe, publicamente, tal requisito está ultrapassando a esfera do indivíduo e estipulando tacitamente um modelo institucionalizado. Por extensão, se permitido, o povo começa a entender como procedimental um comportamento sem empatia para com o outro.

O perigo mora aqui.

Hannah Arendt, no livro Eichmann em Jerusalém – o qual é fruto do acompanhamento da autora do julgamento do oficial nazista –, nos mostra que a indiferença com o sofrimento alheio era um mote entre os oficiais, chefes de polícias e todos os que estavam na linha de frente do cometimento da barbárie.

A SS (Schutzstaffel), a assim chamada polícia nazista, ainda segundo Arendt, se dissociou de tipos “emocionais” de seu comando. Justamente por não tolerar empatia.

A alteridade (do latim Alter = outro) é o que mais caracteriza a comunidade humana. Comunidade esta que permite a convivência entre indivíduos de diferentes etnias, cores e credos.

Sem este valor a sociedade humana é inviável. Sem ele, nossa animalidade latente, sobressaltada, obscurece qualquer tipo de relação fraternal.

Emmanuel Lévinas – filósofo nascido numa família judia e preso pelos nazistas, chegando a ser exilado –, em Entre nós: ensaios sobre a alteridade, elabora um pensamento da alteridade que põe o humano como o único ser com o qual nosso encontro com ele torna-o uma presença diferente de todas as outras.

Isso significa, dentre outras coisas frente à complexidade do pensamento do autor, que a existência do outro perante mim não é tratada de forma genérica, como um objeto indiferente.

O outro é sempre aquele ser que não posso abarcá-lo por completo, porquanto seu modo de existir está além de minha posse. Ele é livre. O outro sempre foge à minha compreensão total.

Uma das características mais importantes da alteridade é, portanto, respeitar a liberdade de ser do outro.

Quando o outro se interpõe entre mim e o mundo concebo nele sua particularidade que lhe faz homem, livre, uma existência como a minha. Quando o englobo numa definição genérica – ou numa classe – retiro dele a sua humanidade. Torno-o um objeto. Nego-o.

A impessoalidade no trato inter-humano pode levar às atrocidades já conhecidas por nós, principalmente nos totalitarismos do século passado. 

A burocracia acima do humano, uma pragmática irrefletida, era o procedimento habitual entre os oficiais nazistas, relatado por Arendt e segundo Eichmann.

Quando um órgão do Estado, responsável pela segurança pública, começa a supervalorizar a apatia às questões humanas há aí possíveis traços de violência perpetráveis. O outro é tornado apenas uma estatística ou uma generalização.

Na Fenomenologia da percepção Merleau-Ponty pontua que entre eu e o outro há um “prolongamento de intenções”, relação que faz dos dois um único todo, num mundo comum.

A alteridade, podemos pensar, se estabelece nesta “comunidade”. É saber que eu e o outro formamos um tecido conjunto no seio de um mundo compartilhado.

Requerer indiferença ao mundo humano é desumanizar o indivíduo. Torna-se mais medonho quando e se um povo passa a achar isso um ato banal ou necessário.

A Polícia do Paraná, ao publicar seus requisitos, abdicou da responsabilidade. 

A linguagem possui um “funcionamento afetivo”, exposto por Merleau-Ponty em A prosa do mundo. Quando expressa, também num documento, como no edital, ela afeta todos aqueles aos quais alcança.

Esta afetividade imbui o “leitor desprevenido” (Merleau-Ponty, A prosa do mundo) de uma significação nova. Por isso a responsabilidade do falar, do escrever, do dialogar.

Por fim, tanto Lévinas como Merleau-Ponty nos mostram que o outro não é uma coisa como outra qualquer. É, acima de tudo, uma realidade vivente, que sente o mundo à maneira peculiar de ser o que é: homem.

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