História e utopia, de Cioran

E. M. CIORAN |
Foto de Rogelio Cuellar
O romeno Émil Cioran (1911-1995), em boa parte de sua vida, passou por incontáveis noites insones, principalmente quando ainda habitava a Romênia – mudou-se para Paris em 1937.

Como ele mesmo afirmou, na entrevista-documentário O Apocalipse segundo Cioran, e no livro Do inconveniente de ter nascido, muitas destas noites saía para vagar pelas ruas desertas, nas quais apenas as prostitutas eram suas companhias.

Este contexto de insônias fieis, as quais o privavam da consciência do tempo – por “viver ininterruptamente” –, o fez enxergar a vida humana como um peso inexprimível. Interpretava-a biliarmente, com a acidez que o sofrimento lhe causava.

Para compreender satisfatoriamente sua obra História e utopia é preciso que compreendamos a visão de homem de que Cioran se alimenta.

Afirma ele, nesta obra, que conhecer-se profundamente é abominar o seu semelhante, justamente por compreendermos que ele é semelhante a si.

E também em Do inconveniente de ter nascido escreveu: “Não encontrei um único espírito interessante que não estivesse abundantemente munido de deficiências inconfessáveis.”

Em linhas gerais, o autor vê no humano um ressentido. O homem reprime suas virulências naturais em nome de um estágio de lassidão compulsória. Quando este silêncio se cansa, o homem se torna algoz pelos seus vícios instintivos. 

Este caráter insípido, mortificado, passivo, para o romeno, não constrói a história. Para ele, a nação e, por conseguinte, o governo vorazes são quem a constroem. Há nestes últimos o ímpeto da ação, do embate, da construção por meio da destruição.

Os grandes fatos históricos foram protagonizados por governos ou por nações com sede de extermínio. Foram estes que produziram a narrativa da qual é possível se falar hoje e que deu contornos ao que somos, historicamente.

O autor defende que a tirania – agente principal dos grandes fatos históricos – tem uma relação necessária, mas não suficiente, com a história: “Carlos Magno, Frederico II de Hohenstaufen, Carlos V, Bonaparte, Hitler tiveram a tentação, cada um a sua maneira, de realizar a ideia do império universal.” (História e utopia).

A tirania é a afirmação última de uma mentalidade jovem, sedenta de fanatismo, de extermínio e de ação. A velhice, por outro lado, é a afirmação liberal, do cansaço, da tolerância, da democracia sincera.

Contudo, é no silêncio ou na tolerância completa que os inimigos agem, impondo suas taras e suas vontades. É preciso ter cuidado com a lassitude.

Para Cioran, a história é a ação. Os acontecimentos históricos são os que dão face às narrativas históricas e ao produto que somos. E estes acontecimentos são sempre efeitos de decisões movidas por crenças, autoritarismos, vontade em geral.

As ações nos escravizam e têm poder sobre nós. Aderimos aos efeitos de um ato no momento exato em que o praticamos. É por isso também que a história não pode ser apartada das ações de governos. As ações são sempre produto de uma decisão. E a decisão é eminentemente humana.

Cioran ainda enfatiza que a chancela de um tirano é a debilidade do povo. Em outras palavras, o povo parece atrair o despotismo: “o ‘povo’ sabe muito bem a que está destinado: a sofrer os acontecimentos e as fantasias dos governantes, prestando-se a desígnios que o enfraquecem e o oprimem.” (História e utopia).

Isso significa que o povo se deixa conduzir pelas ideias dos governantes aos quais se sentem mais afins. É a afinidade da tirania, do controle, que acaba se voltando contra si próprio. Assemelha-se aos tiranetes dos quais la Boétie falou. Esta dinâmica é o motor da história.

E a revolução, assim como a utopia, é a tentativa de um povo, cansado das provações de um regime, procurar novas formas de atrocidades para impor e ser submetido.

Cioran parece resumir a aliança entre ser homem e fazer política na seguinte passagem, de História e utopia: “a dimensão política dos seres (entendendo por política o coroamento do biológico) salvaguarda o reino dos atos, o reino da abjeção dinâmica.”

É no fazer política, assim, que o homem expõe seu modo de ser mais primitivo, biológico. Como ele enfatiza logo em seguida: “conhecer a nós mesmos é identificar o motivo sórdido de nossos gestos, o inconfessável inscrito em nossa substância, a soma de misérias patentes ou clandestinas das quais depende a nossa eficácia.”

Em suma, Cioran talvez dispense um exagerado subjetivismo na história, isto é, como se esta fosse produto exclusivo de decisões individuais de governantes, apartadas da realidade. Mas, como pontuamos acima, essas decisões têm um caráter necessário, mesmo que não suficiente, com a historicidade.

Por fim, é inegável que decisões políticas tenham a ver também com ideias de quem as toma. E essas ideias são produtos de visões de mundo e de vontade particulares. É nesta direção que Cioran escreve.

Comentários

  1. Texto excelente. O leitor termina e deseja correr e conhecer a obra de Cioran. O seu blog presta um grande serviço à Filosofia. Em uma época de Youtubers e seus vloggers convidativos e, muitas vezes superficiais, escrever é um ato de resistência.

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