O ímpeto filosófico nos primórdios da anatomia e fisiologia

HOMEM VITRUVIANO | Da Vinci
Não é incomum nos depararmos com a afirmação de que a filosofia é a mãe de todas as ciências particulares. De fato, quanto mais uma ciência é antiga mais provavelmente ela nasceu de inferências filosóficas.

Com a anatomia e a fisiologia não é diferente.

Charles Singer, médico e historiador da ciência britânico, que viveu de 1876 a 1960, nos presenteia com um panorama histórico destas duas ciências.

O curto livro Uma breve história da anatomia e fisiologia desde os gregos até Harvey (Unicamp, 1996) sintetiza os diversos pensadores e cientistas das duas áreas.

Muito antes dos principais pensadores gregos e da história propriamente dita, havia evidências de conhecimentos rudimentares sobre anatomia. Isso favorecia a acurácia da caça, por exemplo, quando ataques deveriam golpear órgãos vitais.

Esse conhecimento embrionário da estrutura anatômica animal era evidenciado em gravuras paleolíticas em cavernas.

Com o advento do pensamento racional, entender a capacidade sensitiva do homem – bem como dos animais – passava pela compreensão de sua estrutura e funcionamento internos.

A filosofia deixou, em muitas vertentes, o pensamento puramente abstrato e partiu para a busca empírica do animal. Tal empreitada ajudou no entendimento do homem como um ser que dependia de estruturas da matéria bem definidas.

As explicações mistificantes diminuíam. Mas inferências errôneas ainda se mantinham.

Para alguns, como Aristóteles, o coração era a sede da inteligência, característica que só foi contrariada por Herófilo de Calcedônia (cerca de 300 antes da era cristã), dando ao cérebro, definitivamente, tal incumbência.

Depois da Grécia Clássica, Galeno (129-199 depois da era cristã), ainda um grego, manteve-se hegemônico no conhecimento anatômico disseminante no Ocidente: do século II até por volta dos séculos XV-XVI.

Contrariar a compreensão galênica do corpo humano – a qual defendia que este último, por meio dos órgãos, estava submetido aos desígnios de Deus – era afrontar o “conhecimento oficial”: a Igreja.

Para a filosofia anatômica de Galeno, portanto, o corpo era teleológico, ou seja, obedecia a uma função predeterminada pelo divino.

Contudo, a anatomia galênica, no geral, tinha e tem seu valor científico comprovado.

Com André Vesálio, na anatomia, e William Harvey, na fisiologia, estas duas áreas livraram-se das amarras do galenismo ortodoxo. Houve profunda compreensão de partes e processos mais obscuros outrora.

Vesálio buscava corpos putrefatos dos condenados e executados para dissecação. Harvey, por meio de competentes e minuciosas observações, deduzia a circulação sanguínea precisamente, mesmo em estruturas microscópicas sem auxílio de instrumentos ópticos, como nos capilares.

Singer demonstra rico conhecimento da história da anatomia e fisiologia, dois ramos básicos e absolutamente indispensáveis para a prática médica – seu ofício.

Além destes personagens citados, há inúmeros outros no texto que contribuíram para a evolução da anatomia.

Hoje, a anatomia e fisiologia parece terem sido reduzidas a protocolos acadêmicos, como disciplinas obrigatórias para a área de ciências da saúde e biológicas.

Parece terem perdido o brilho e a importância, aos olhos de muitos, como forma de compreensão primordial da maquinaria animal.

Será que isso se deve ao fato de que o homem não pensa mais em si mesmo, profundamente? Será que a filosofia do homem reporia a anatomia e fisiologia no centro da compreensão humana, como a neurociência faz ao buscar entendê-lo voltando-se à neuroanatomia e neurofisiologia?

Depois de milênios, pode ser que filosofia, biologia e ciências médicas estejam tão próximas quanto nos primórdios.

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