Willard Van Orman Quine |
Ler Quine não é uma tarefa simples. Ou melhor, ler os filósofos da linguagem ou da lógica não é trabalho banal. Mas é um propósito indispensável para qualquer um que tenha curiosidade em compreender como se dá o conhecimento científico.
Quine não é um defensor do empirismo radical, aquele que defende a experiência empírica como o império de todo conhecimento científico. Nem, tampouco, um racionalista fervoroso que vê a razão humana, com suas concatenações lógicas, como a única responsável pelo processo do conhecer.
Em um de seus textos mais conhecidos – Os dois dogmas do empirismo –, que está contido na sua obra De um ponto de vista lógico, o filósofo defende que o conhecimento científico é o produto de um sistema de enunciados no qual, nas extremidades, se encontra a experiência empírica.
Com isso, percebemos que os dados dos sentidos não têm preponderância absoluta sobre a ciência.
Mas, como traduzir essa posição de Quine?
Um conhecimento científico se edifica sobre um conjunto de enunciados (sistema). Alguns destes enunciados carecem de validação empírica. São os enunciados mais periféricos (não em sentido pejorativo).
No centro do sistema há aqueles enunciados que são postulados, os quais independem de verificação na realidade. E a ciência não prescinde destes postulados, facilitando o “manuseio da experiência sensível”, como afirma o autor.
No interior do sistema, os enunciados se interconectam por relações lógicas.
Na física, objetos no nível atômico e subatômico, a força, a energia; na matemática, entidades abstratas. Todos esses são exemplos de postulados erigidos para dar corpo e base para o sistema. Não são dados dos sentidos.
Epistemologicamente, defende Quine, os postulados físicos, matemáticos ou quaisquer outros têm o mesmo peso que os deuses de Homero tinham para explicar os fenômenos naturais.
Vale ressaltar o caráter epistemológico da comparação quineana, e não como objetos de experiência. Isto é, os deuses foram úteis conceitualmente para auxiliar a explicação de determinados fenômenos.
Os dois dogmas do empirismo aos quais Quine se refere e se contrapõe são: (I) para cada enunciado há um domínio sensorial que o valida ou o rechaça; e (II) enunciados ou são analíticos ou sintéticos.
Para situar os conceitos, enunciados analíticos são aqueles que são verdadeiros apenas em relação aos termos que os constituem. Os sintéticos, por outro lado, são aqueles que necessitam do mundo da experiência para chancelar sua verdade.
Para Quine, estes dois dogmas do empirismo não são o caso. Em relação a (I), o filósofo defende que não há necessariamente um fato do mundo sensível que valide ou negue um enunciado, mas novos enunciados geralmente são trazidos à luz para tornar aquilo uma verdade ou compreendê-lo por outras perspectivas.
Por exemplo, se alguém afirma “existe unicórnio”, outros enunciados podem ser emitidos para se compreender em que circunstância isso foi dito. Pode ter sido fruto de uma alucinação, de um contexto fictício etc.
Em relação a (II), não faz sentido defender um linha divisória entre enunciados analíticos e sintéticos, porque a verdade científica é fruto de um conjunto de enunciados, e não de enunciados isolados.
Quando um enunciado da extremidade, o qual tem relação com a experiência empírica, não é satisfeito nessa experiência, muitas vezes mudam-se outros enunciados do cerne do sistema. Isso acarreta uma cadeia de mudanças de outros enunciados, devido às interconexões lógicas entre eles.
Estes ajustes constroem a verdade científica, dentro do sistema em questão, para aquele fato averiguado.
Dessa forma, para a ciência, não há utilidade em delimitar o analítico e o sintético. Um sistema científico é uma relação entre enunciados que, no final, a experiência dita os ajustes.
Em suma, para esta questão e sem considerar a experiência sensível, Quine afirma que “qualquer enunciado pode ser considerado verdadeiro, aconteça o que acontecer, se fizermos ajustes drásticos o suficiente em outras partes do sistema.” Isso evidencia a irrelevância de separarmos analítico de sintético.
É claro que um texto com esta extensão não esgota a profundidade e a complexidade do tema, muito menos a apresentação da filosofia quineana.
Todavia, pelo menos apresenta, de forma rápida, a posição do filósofo em relação à construção das verdades científicas, as quais dependem de um conjunto de enunciados conectados entre si e que variam de acordo com a experiência sensorial.
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