Schweitzer, nativos africanos e a preguiça: por uma questão de justiça

Albert Schweitzer em seu hospital, no Gabão
É preciso sermos justos com aquilo sobre o qual escrevemos. Dito isso, portanto, é preciso se fazer justiça intelectual com Albert Schweitzer (1875-1965). 


Schweitzer, Nobel da Paz em 1952, foi um médico que abdicou – aos 38 anos, após doutorar-se em medicina – da concreta carreira de músico, teólogo e filósofo para se embrenhar na selva de Gabão, então colônia francesa da África equatorial.


Em alguns textos que li sobre este eminente personagem da história mundial, diz que certas referências que ele fazia aos nativos africanos seriam, hoje, antropologicamente equivocadas (o que, de fato, pode ser verdade).

Contudo, uma delas era a caracterização, por Schweitzer, de que aqueles indivíduos eram preguiçosos.

Esta acusação contra o médico não perdura até lermos uma de suas obras: Entre a água e a selva. É no Capítulo VII (Problemas sociais na selva), o mais antropológico de todos, que o autor suscita este tema.

Schweitzer tinha uma acurada capacidade de descrição e uma sensibilidade humana apta a captar muito bem o comportamento daquele povo. É por isso que sua obra é uma etnografia feita por quem não era antropólogo de formação nem seguia uma metodologia etnológica.

Ele viu nos nativos não uns preguiçosos, mas homens altamente objetivos. Seu trabalho se dá apenas com a finalidade de alcançar algum fim específico, e em oportunidades circunscritas no tempo e no espaço. Compreensível para um mundo alheio à constituição ocidental do trabalho. Eram filhos da natureza e assim viviam.

“A natureza lhe oferece, por um trabalho mínimo, mais ou menos tudo quanto ele necessita para viver na sua aldeia”, escreve Schweitzer. “O nativo não é preguiçoso, mas sim um homem livre. É por isso que se torna apenas um trabalhador ocasional, com o qual nenhuma operação ordenada é possível”, prossegue.

A dificuldade de tornar estes homens trabalhadores fixos, com carga horária regrada, consistia na falta de sentido que isso fazia para quem nunca viveu neste contexto racionalizado. Nada tinha a ver com preguiça.

Schweitzer era um profundo observador, alguém que adquiriu tamanho conhecimento humano pela experiência empírica fatídica. Sua forma de tratar os gaboneses também passava por sua necessidade prática, a fim de dar cabo das tarefas que lhe eram incumbidas.

Nossa imersão em um mundo tradicionalmente oposto ao nosso requer que nos dispamos de valores que, inadvertidamente, carregamos. A sensibilidade em perceber o outro que não tem intersecção com nossa cultura, em suas nuances genuínas, é pré-requisito para que não o julguemos com nossas réguas.

É por isso que sempre podemos não compreender completamente o que um grande pensador e altruísta da estirpe de Schweitzer afirma, mesmo quando não se é preciso fazer grandes reflexões.

Ajuste feito, a leitura deste autor é de uma riqueza literária e humana inestimável.

A recomendação está posta.

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